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sábado, 19 de março de 2011

Liberdade no âmago - um conto


A multidão fervilhava em uma mistura de ódio e pavor contido face à marcha inexorável que confirmava o cumprimento da profecia. Era cinco de maio de 1935, Kazyrin, do alto do palanque, ergueu a mão esquerda com o punho cerrado e vociferou execrações contra o lumpesinato. Os desviantes eram criaturas anti-históricas que seriam eliminadas pela própria necessidade da causa. A natureza, concebida pelos líderes ideológicos como palco das ações humanas, não lhes dava a mínima chance de continuar existindo.
No mesmo dia, a cerca de mil quilômetros de distância de Níjni Novgorod, a Waffen SS incursionava no pequeno vilarejo de Lauchhammer. No apertado sótão localizado na parte detrás do celeiro, encoberto por feixes de trigo, Schoppelmann improvisou um esconderijo para sua irmã mais nova, para ele próprio e para dois amigos da vizinhança. Os quatro eram jovens judeus-alemães, feitos órfãos pelo regime nazista. Conseguiram sair ilesos e, três meses depois, com a ajuda de uma professora da escola local, emigraram para a América.
A infância de Schoppelmann fôra das mais difíceis. Órfão já aos dez anos, passou a cuidar sozinho da irmã de cinco. Sempre esteve longe de ser popular na escola e suas amizades eram poucas. Às vezes tem-se a impressão de que as pessoas são escolhidas. O jovem garoto da região de Brandenburg soube desde cedo tirar proveito das agruras que a vida lhe impôs já em tão tenra idade.
Schpoppelmann era sério, carrancudo, não fazia concessões moralmente aviltantes, odiava o sucesso fácil e jamais se deixava levar pelas efusividades de fachada. Para ele, nada poderia ser mais revelador do que a interioridade humana, o mérito, não só pragmático, mas sobretudo moral, a humildade, a tolerância, a coragem, a justiça, a simplicidade e a boa fé sempre foram as virtudes que mais prezou, pois nelas, e só nelas, é que se pode encontrar os universais que perfazem o ser humano em sua completude, o próprio spoudaios aristotélico.
Schoppelmann dedicou o restante de sua vida aos estudos. Na América, se formou filósofo, lecionou em Princeton e deu palestras no mundo inteiro. Escreveu cerca de 45 livros, publicados em vários línguas, além de uma quantidade imensurável de artigos e ensaios. Os temas da interioridade humana e da liberdade individual, pilares do senso do dever e da responsabilidade, elementos que ele conhecia tão bem desde a infância, compuseram o norte de sua obra como grande humanista. Trabalhou incansavelmente em prol do que é mais nobre na experiência humana, inclusive em relação a qualquer forma de vida, a própria liberdade.
E quanto a Kazyrin? Bem, digamos que na prática nunca conseguiu realizar nada pelos outros, nada de positivo. Seu erro foi nunca ter deixado de lado o apego ferrenho à religião mundana cujos dogmas promovem a reificação de uma realidade paralela, transfigurada, ilusória e portanto, de impossível materialização. Acabou, de maneira previsível e fatal, apanhado por essas armadilhas tão típicas das ideologias paranóicas que só podem se alimentar do medo e da fabricação de culpados, aqueles que existem e são execrados para justificar a irrealização da causa no presente, bem como para manter a crença patológica de sua suposta materialização num futuro que, evidentemente, jamais chegará. Os inimigos da causa nunca deixarão de existir, do contrário, é a causa mesma que se torna extinta.
Schoppelmann sempre esteve atento aos universais intemporais. Schoppelmann vive por seu legado de liberdade. Kazyrin provou do próprio veneno, morreu pelas mãos dos assassinos ideológicos. Outrora, ele havia sido um deles. Hoje ninguém mais o conhece. A ideologia sobrevive e continua fazendo vítimas expiatórias. Por sorte, os homens podem contar, se assim o quiserem, com o bálsamo dos que sabem que nem tudo é possível.

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