“Tenho o hábito de me considerar um racionalista; e um racionalista, suponho, deve ser alguém que deseja que os homens sejam racionais. Mas nos dias de hoje a racionalidade recebeu muitos golpes duros e, por isso, é difícil saber o que os seres humanos possam alcançar. A questão da definição da racionalidade possui dois lados, o teórico e o prático: o que é uma opinião racional? O que é uma conduta racional? O pragmatismo enfatiza a opinião irracional, e a psicanálise enfatiza a conduta irracional. Ambos levaram as pessoas a perceber que não existe um ideal de racionalidade com o qual a opinião e a conduta possam estar em conformidade de forma vantajosa. A consequência parece ser que, se eu e você tivermos opiniões diferentes, é inútil apelar para o argumento, ou buscar a arbitragem de uma terceira pessoa imparcial; não há nada que possamos disputar pelos métodos da retórica, da propaganda ou da guerra, segundo o grau de nossas forças financeiras e militares. Acredito que essa perspectiva seja bastante perigosa e, a longo prazo, fatal para a civilização.”
Foi com tais palavras que Bertrand Russell iniciou o ensaio “Pode o homem ser racional?”, escrito na década de 1920. Hoje, passados cerca de 85 anos desde então, há motivos de sobra para considerar que os tantos “golpes duros” sofridos pela racionalidade tenham aumentado exponencialmente em relação à época em que o filósofo inglês redigiu seu texto. Depois dos frankfurtianos e da escola pós moderna, que parece ter dado seus primeiros passos ainda no século XIX, por meio de nomes como Nietzsche e Bergson, passando pelos inúmeros profetas da decadência do Ocidente no século XX, o irracionalismo abraça vorazmente tudo a seu alcance, cada vez mais. A picaretagem conquistou o mundo, segundo o dito de Francis Wheen, um racionalista que de resto, é marxista demais para o meu gosto.
Se alguma vez um pensador genuinamente iluminista do século XVIII afirmou ipsis litteris que acreditava no Progresso, com “P” maiúsculo, linear e constante, hoje é certo que ninguém mais advoga tal pensamento. Qualquer estudante de Ensino Médio com um mínimo de senso histórico pode notar que isso é falacioso. Se fosse esta a ideia a mover tantos ataques contra a razão, os racionalistas não precisariam estar preocupados, embora ainda possa haver um certo número de ingênuos ou preguiçosos intelectualmente que estabeleçam sua contrariedade ao racionalismo a partir desse viés. Na verdade, a dúvida desdenhosa em relação ao potencial libertador da razão encontra sua tese em interpretações equivocadas, tanto no que tange à própria filosofia racionalista, incluindo aí a aposta nos benefícios da ciência, como também em campos do conhecimento surgidos no século XX, tais como a psicanálise e a linguística.
É óbvio que nenhum racionalista defende o ponto de vista de que o homem possa atingir um grau de razão em cem por cento. Se não fosse o absurdo que isso já parece pressupor logo de cara, seria possível recorrer àquilo que muitas filosofias orientais (o exemplo é proposital...) ensinam há milênios, a saber, que o homem é imperfeito. O lado irracional da mente é inerente ao ser humano, o que o racionalismo propõe, são métodos para se lidar com esse aspecto, de modo a tentar atenuá-lo. Quando somos postos a pensar apenas por alguns segundos, fica fácil observar que em nossas ações do cotidiano, que ocupam uma quantidade bastante significativa do tempo, nos orientamos com base nos signos da razão. Se você encontra um vazamento na pia de sua cozinha, irá buscar primeiramente contê-lo; tão logo tenha feito isso, o próximo passo será identificar a causa do problema, para então solucioná-lo a partir das técnicas conhecidas. Quando vamos preparar uma macarronada, uma lógica deve obrigatoriamente ser seguida, desde o tamanho do caldeirão a ser usado, passando pela fervura da água e acréscimo dos temperos, até a retirada do cozimento no ponto certo, para finalmente juntar ao macarrão, o molho e o queijo. Se os passos não forem obedecidos na ordem correta, lógica e racionalmente, certamente a fome terá que ser saciada com uma massaroca indigesta. Exemplos básicos do dia-a-dia em que a razão é fundamental. Poder-se-ia objetar essa argumentação dizendo que a vivência e a inter-relação entre as pessoas envolvem fatores de ordem muito mais complexa, nos quais a objetividade empregada nos exemplos anteriores acaba por não existir. Claramente isso é verdade, mas antes de considerar a objeção, cabe perceber, seguindo o próprio Russell, que “um grande defeito dos filósofos é preferir os grandes exemplos do que aqueles que se passam em nossa vida comum e no cotidiano”. Uma vez mais fazendo valer a reflexão de Russell, é dever reconhecer que o pragmatismo subjetivista teve o mérito de notar que as crenças humanas são vagas e complexas, não apontam para fatos precisos e unívocos, mas para diversas regiões de fatos vagos e díspares. Tais crenças, portanto, ao contrário das proposições esquemáticas da lógica, não são opostos definidos como verdadeiro ou falso, mas sim uma névoa imprecisa de verdade e falsidade; possuem tons variados de cinza, nunca pretos ou brancos. Dessa forma, uma vez feito jus às descobertas importantes do pragmatismo, o problema é confundir crença com verdade, eximindo-se da busca científica e filosófica pela aproximação possível da verdade, corrigindo, ao menos em parte, a distorção provocada pelas opiniões humanas, permeadas por grande dose de paixão. Essa seria, a meu ver, a função das ciências humanas. Ainda voltarei a isso. Quando a ideia simplista de que tudo é opinião satisfaz um intelecto indolente, é impossível proceder a um ajuste amigável das diferenças. Acaso não seriam as guerras e os totalitarismos do século XX, frutos justamente dessa forma de pensar e agir, ao contrário do que tentam transmitir os irracionalistas, afirmando que a razão e a ciência conduziram a humanidade ao estágio atual? Conferir peso exagerado à subjetividade, seria, mutatis mutandis, incorrer no mesmo erro de um pseudo racionalista, que nada enxerga além de uma objetividade que só existe a seus próprios olhos.
A ciência é um dos alvos de ataque preferidos do irracionalismo. Os obscurantistas, como comecei a destacar já no parágrafo anterior, afirmam que o sonho de um futuro paradisíaco apregoado pelos racionalistas a partir da ciência, não passou de uma grande quimera, dado as catástrofes observadas em escala cada vez maior a partir do ano de 1914. Primeiramente, nenhum racionalista sério defendeu alguma vez que tenha sido, que a ciência, por si só, levaria o homem à felicidade plena. Aliás, essa meta parece cair como uma luva em várias filosofias narcisistas pós modernas. Um racionalista sabe bem que felicidade, em seu estágio consumado, é algo interno, produto de um trabalho mental-filosófico e individual, não mantendo relação com fatores externos, como a ciência. Em segundo lugar, a ciência é impessoal e amoral, suas descobertas intrínsecas não estão preocupadas com a aplicação de seus resultados. A ciência não é um deus que escolhe suas ações. A ciência se faz e se desenvolve a partir de métodos racionais, não indo além disso. O uso que dela se faz, é preciso entender, trata-se de uma questão humana, sujeita aos desmandos e paixões da subjetividade; nada garante que, por ser a ciência racional no que se refere aos seus métodos, seja racional também em suas aplicações. A ciência é uma criação humana e, quando utilizada para o bem, não há dúvida de que melhora acentuadamente e a cada minuto a vida das pessoas. De outro modo, quando mal utilizada, gerou e ainda gera prejuízos imensos. Quem faz a escolha não é a ciência, é o homem. O pragmatismo é incapaz de condenar aquilo que ele próprio critica, pois fica preso em sua armadilha. Como desaprovar escolhas se a argumentação racional jamais pode prevalecer sobre o nevoeiro das opiniões e das crenças?
Muitos pensadores pós modernos consideram que a psicanálise foi um campo do saber responsável por impor ao racionalismo uma derrota da qual ele jamais poderia se recuperar. A meu ver, essa ideia resulta de uma noção errônea sobre a psicanálise e sobre a filosofia racionalista. O racionalismo jamais desconsiderou a existência e a importância da dimensão irracional da mente humana. Se fosse o contrário, não haveria nenhum motivo para a busca da razão, já que ela não se faria necessária diante da inexistência de seu oposto. Exatamente por enxergar o irracional, a filosofia racionalista deseja que os homens sejam racionais, pelo menos, tanto quanto possível, para modificarmos um pouco a formulação de Russell. Não é diferente com a psicanálise. Quando Freud descobriu e analisou as pulsões destrutivas do homem, não pretendeu com isso transmitir a ideia de que fosse impossível se libertar desses fantasmas da mente. O que é a psicanálise senão a tentativa, racional, diga-se de passagem, de fornecer um antídoto contra as pulsões? Desde Freud, vários meios, psicológicos ou filosóficos, foram expostos e praticados na tentativa de lidar com a questão da perda da satisfação total. Há bons motivos para acreditar que os meios racionais são os mais bens sucedidos nessa empreitada. Álcool e drogas, por exemplo, são tentativas irracionais de se lidar com as agruras da mente. Irracionais porque os resultados são paliativos, isolam as pessoas, tornando cada vez mais difícil a convivência social e a manutenção de laços afetivos de amor ou amizade; contribuem apenas para um maior autocentramento, o que sabidamente agrava ainda mais distúrbios psíquicos como depressão e síndrome do pânico. Nesse sentido, as filosofias pós modernas são igualmente prejudiciais em relação às doenças típicas da contemporaneidade, uma vez que o hedonismo, traço marcante dessas vias de pensamento, ao superstimar a subjetividade, confere grande margem para o egoísmo, porta de entrada a muitos males da mente.
No campo da linguística, tem-se ao que parece, a maneira mais fácil de comprovar que os ataques do pós modernismo à razão constituem nada mais do que uma tentativa desesperada de justificar o impossível, ou seja, aquilo mesmo que a lógica e os argumentos desmistificam. Tornou-se comum ao longo do século XX o surgimento de filosofias e pensadores que, com base na interpretação dos signos da linguagem, ramo conhecido como semiótica, defenderam que qualquer tentativa de se chegar à verdade, ou mesmo de busca por probabilidade que possa tornar uma conclusão aceitável, esbarra impreterivelmente na textualidade e na subjetividade do autor do texto. Sendo assim, toda forma de apresentação de conclusões, descobertas, análises, ou seja lá o que for que se proponha a defender alguma ideia, é um discurso de poder, viciado pelo ponto de vista do autor. Essa ênfase na textualidade, logo de cara, descarta o fator ético como critério de validação de conclusões. Qualquer cientista sério deve ter compromisso com a verdade, mesmo que não chegue a ela, o fracasso nunca pode ser deliberado. Ainda que isso não bastasse e os pós modernos afirmassem que, mesmo preservando a ética, a subjetividade inconsciente impossibilite a descoberta de qualquer verdade ou probabilidade imparcial, há que se considerar que a aferição de uma conclusão é externa ao sujeito que a oferece. A experiência e a confrontação de descobertas e interpretações múltiplas pode sim, sem dúvida, tornar conclusões válidas, ou na pior das hipóteses, pode fazer com que uma boa dose de probabilidade praticamente seja capaz de desfazer hesitações. Como bem coloca o historiador Carlo Ginzburg ao pensar na pesquisa histórica especificamente, (ou nas Humanidades em geral, poderíamos dizer) corrigir a distorção de um documento, procurando indicar para que lado ou em que sentido essa distorção ocorre, já é uma atividade científica. Aqueles que dizem que história e literatura são a mesma coisa não possuem a menor noção de como atua um historiador, nem tampouco sabem alguma coisa sobre crítica documental. Seria ainda possível que os pós modernos defendessem que mesmo sendo a aferição externa ao sujeito, aqueles que aferem estão igualmente mergulhados na subjetividade, impedidos portanto de aferir imparcialmente. Os avanços da ciência e as descobertas que os próprios pós modernos desfrutam, servem para desmentir tal argumento, que pareceria absurdo até ao senso comum. Mais uma vez, torna-se complicado para um pós moderno argumentar em defesa de sua maneira de enxergar as coisas. O linguista e filósofo alemão Karl-Otto Apel foi lapidar quando formulou o conceito de autocontradição performativa, cilada que faz com que a filosofia subjetivista prove de seu veneno. Segundo Apel, uma vez que um cético pós moderno admita que nada há além de crenças parciais e contaminadas pela subjetividade, é necessariamente obrigado a negar aquilo que ele mesmo pensa, pois sua versão dos fatos não passa de um ponto de vista obscurecido pelo seu próprio achismo, não tendo validade alguma. Um pós moderno defende uma teoria e, quando a conclui, está implicitamente afirmando que tudo o que acaba de dizer é pura subjetividade.
O grande Russell, que me serviu de ponto de partida para essa reflexão, foi em toda sua vida, um otimista no que diz respeito às possibilidades de construir um mundo melhor a partir do racionalismo. Ele costumava dizer que se as pessoas fossem mais racionais, o mundo se tornaria um paraíso em relação ao que era, embora num certo momento, como deixa pressupor o excerto inicial, ele próprio tenha se desencantado um pouco. Hoje em dia, mesmo filósofos sérios como John Gray, zombam de Russell, atribuindo-lhe ingenuidade em sua esperança. Se esquecem que a maior parte de suas análises fori construída entre 1920 e 1965; quando se historiciza Russell e quando se atenta para o fato de que ele acreditava num mundo melhor em comparação àquele que ele viveu, não há ingenuidade alguma em seu otimismo. Se em certo sentido a humanidade está em situação pior do que há 70 ou 60 anos, isso não se deve a uma suposta falha do racionalismo, mas justamente ao crescimento dos irracionalismos. Eu, que me coloco como um seguidor de Russell, talvez seja menos otimista do que ele. Vivemos numa era em que o poder irracional dos meios de comunicação de massa e uma forma doentia de capitalismo que não exclui, mas coopta as massas de um modo absolutamente inadequado e imperfeito, além do crescimento assustador das filosofias subjetivistas, ameaçam seriamente as possibilidades de um racionalismo revigorado, muito mais do que a bárbarie do século XX, por serem muito menos explícitos. De outro modo, dentre muitos exemplos, considero absolutamente racional que nos dias de hoje o ser humano prescinda por completo do consumo de carne, o que traria benefícios ecológicos e espirituais de larga monta, assim como creio que conflitos devidos à particularidades culturais e religiosas poderiam ser resolvidos com base no diálogo racional, que não conhece pátria, credo, cor, ou seja lá qual tipo for de particularismo. Não vejo ingenuidade nisso. A razão é um atributo humano e universal, motivo pelo qual, apesar do pessimismo, ainda assim me inspirei a redigir esta apologia.
Foi com tais palavras que Bertrand Russell iniciou o ensaio “Pode o homem ser racional?”, escrito na década de 1920. Hoje, passados cerca de 85 anos desde então, há motivos de sobra para considerar que os tantos “golpes duros” sofridos pela racionalidade tenham aumentado exponencialmente em relação à época em que o filósofo inglês redigiu seu texto. Depois dos frankfurtianos e da escola pós moderna, que parece ter dado seus primeiros passos ainda no século XIX, por meio de nomes como Nietzsche e Bergson, passando pelos inúmeros profetas da decadência do Ocidente no século XX, o irracionalismo abraça vorazmente tudo a seu alcance, cada vez mais. A picaretagem conquistou o mundo, segundo o dito de Francis Wheen, um racionalista que de resto, é marxista demais para o meu gosto.
Se alguma vez um pensador genuinamente iluminista do século XVIII afirmou ipsis litteris que acreditava no Progresso, com “P” maiúsculo, linear e constante, hoje é certo que ninguém mais advoga tal pensamento. Qualquer estudante de Ensino Médio com um mínimo de senso histórico pode notar que isso é falacioso. Se fosse esta a ideia a mover tantos ataques contra a razão, os racionalistas não precisariam estar preocupados, embora ainda possa haver um certo número de ingênuos ou preguiçosos intelectualmente que estabeleçam sua contrariedade ao racionalismo a partir desse viés. Na verdade, a dúvida desdenhosa em relação ao potencial libertador da razão encontra sua tese em interpretações equivocadas, tanto no que tange à própria filosofia racionalista, incluindo aí a aposta nos benefícios da ciência, como também em campos do conhecimento surgidos no século XX, tais como a psicanálise e a linguística.
É óbvio que nenhum racionalista defende o ponto de vista de que o homem possa atingir um grau de razão em cem por cento. Se não fosse o absurdo que isso já parece pressupor logo de cara, seria possível recorrer àquilo que muitas filosofias orientais (o exemplo é proposital...) ensinam há milênios, a saber, que o homem é imperfeito. O lado irracional da mente é inerente ao ser humano, o que o racionalismo propõe, são métodos para se lidar com esse aspecto, de modo a tentar atenuá-lo. Quando somos postos a pensar apenas por alguns segundos, fica fácil observar que em nossas ações do cotidiano, que ocupam uma quantidade bastante significativa do tempo, nos orientamos com base nos signos da razão. Se você encontra um vazamento na pia de sua cozinha, irá buscar primeiramente contê-lo; tão logo tenha feito isso, o próximo passo será identificar a causa do problema, para então solucioná-lo a partir das técnicas conhecidas. Quando vamos preparar uma macarronada, uma lógica deve obrigatoriamente ser seguida, desde o tamanho do caldeirão a ser usado, passando pela fervura da água e acréscimo dos temperos, até a retirada do cozimento no ponto certo, para finalmente juntar ao macarrão, o molho e o queijo. Se os passos não forem obedecidos na ordem correta, lógica e racionalmente, certamente a fome terá que ser saciada com uma massaroca indigesta. Exemplos básicos do dia-a-dia em que a razão é fundamental. Poder-se-ia objetar essa argumentação dizendo que a vivência e a inter-relação entre as pessoas envolvem fatores de ordem muito mais complexa, nos quais a objetividade empregada nos exemplos anteriores acaba por não existir. Claramente isso é verdade, mas antes de considerar a objeção, cabe perceber, seguindo o próprio Russell, que “um grande defeito dos filósofos é preferir os grandes exemplos do que aqueles que se passam em nossa vida comum e no cotidiano”. Uma vez mais fazendo valer a reflexão de Russell, é dever reconhecer que o pragmatismo subjetivista teve o mérito de notar que as crenças humanas são vagas e complexas, não apontam para fatos precisos e unívocos, mas para diversas regiões de fatos vagos e díspares. Tais crenças, portanto, ao contrário das proposições esquemáticas da lógica, não são opostos definidos como verdadeiro ou falso, mas sim uma névoa imprecisa de verdade e falsidade; possuem tons variados de cinza, nunca pretos ou brancos. Dessa forma, uma vez feito jus às descobertas importantes do pragmatismo, o problema é confundir crença com verdade, eximindo-se da busca científica e filosófica pela aproximação possível da verdade, corrigindo, ao menos em parte, a distorção provocada pelas opiniões humanas, permeadas por grande dose de paixão. Essa seria, a meu ver, a função das ciências humanas. Ainda voltarei a isso. Quando a ideia simplista de que tudo é opinião satisfaz um intelecto indolente, é impossível proceder a um ajuste amigável das diferenças. Acaso não seriam as guerras e os totalitarismos do século XX, frutos justamente dessa forma de pensar e agir, ao contrário do que tentam transmitir os irracionalistas, afirmando que a razão e a ciência conduziram a humanidade ao estágio atual? Conferir peso exagerado à subjetividade, seria, mutatis mutandis, incorrer no mesmo erro de um pseudo racionalista, que nada enxerga além de uma objetividade que só existe a seus próprios olhos.
A ciência é um dos alvos de ataque preferidos do irracionalismo. Os obscurantistas, como comecei a destacar já no parágrafo anterior, afirmam que o sonho de um futuro paradisíaco apregoado pelos racionalistas a partir da ciência, não passou de uma grande quimera, dado as catástrofes observadas em escala cada vez maior a partir do ano de 1914. Primeiramente, nenhum racionalista sério defendeu alguma vez que tenha sido, que a ciência, por si só, levaria o homem à felicidade plena. Aliás, essa meta parece cair como uma luva em várias filosofias narcisistas pós modernas. Um racionalista sabe bem que felicidade, em seu estágio consumado, é algo interno, produto de um trabalho mental-filosófico e individual, não mantendo relação com fatores externos, como a ciência. Em segundo lugar, a ciência é impessoal e amoral, suas descobertas intrínsecas não estão preocupadas com a aplicação de seus resultados. A ciência não é um deus que escolhe suas ações. A ciência se faz e se desenvolve a partir de métodos racionais, não indo além disso. O uso que dela se faz, é preciso entender, trata-se de uma questão humana, sujeita aos desmandos e paixões da subjetividade; nada garante que, por ser a ciência racional no que se refere aos seus métodos, seja racional também em suas aplicações. A ciência é uma criação humana e, quando utilizada para o bem, não há dúvida de que melhora acentuadamente e a cada minuto a vida das pessoas. De outro modo, quando mal utilizada, gerou e ainda gera prejuízos imensos. Quem faz a escolha não é a ciência, é o homem. O pragmatismo é incapaz de condenar aquilo que ele próprio critica, pois fica preso em sua armadilha. Como desaprovar escolhas se a argumentação racional jamais pode prevalecer sobre o nevoeiro das opiniões e das crenças?
Muitos pensadores pós modernos consideram que a psicanálise foi um campo do saber responsável por impor ao racionalismo uma derrota da qual ele jamais poderia se recuperar. A meu ver, essa ideia resulta de uma noção errônea sobre a psicanálise e sobre a filosofia racionalista. O racionalismo jamais desconsiderou a existência e a importância da dimensão irracional da mente humana. Se fosse o contrário, não haveria nenhum motivo para a busca da razão, já que ela não se faria necessária diante da inexistência de seu oposto. Exatamente por enxergar o irracional, a filosofia racionalista deseja que os homens sejam racionais, pelo menos, tanto quanto possível, para modificarmos um pouco a formulação de Russell. Não é diferente com a psicanálise. Quando Freud descobriu e analisou as pulsões destrutivas do homem, não pretendeu com isso transmitir a ideia de que fosse impossível se libertar desses fantasmas da mente. O que é a psicanálise senão a tentativa, racional, diga-se de passagem, de fornecer um antídoto contra as pulsões? Desde Freud, vários meios, psicológicos ou filosóficos, foram expostos e praticados na tentativa de lidar com a questão da perda da satisfação total. Há bons motivos para acreditar que os meios racionais são os mais bens sucedidos nessa empreitada. Álcool e drogas, por exemplo, são tentativas irracionais de se lidar com as agruras da mente. Irracionais porque os resultados são paliativos, isolam as pessoas, tornando cada vez mais difícil a convivência social e a manutenção de laços afetivos de amor ou amizade; contribuem apenas para um maior autocentramento, o que sabidamente agrava ainda mais distúrbios psíquicos como depressão e síndrome do pânico. Nesse sentido, as filosofias pós modernas são igualmente prejudiciais em relação às doenças típicas da contemporaneidade, uma vez que o hedonismo, traço marcante dessas vias de pensamento, ao superstimar a subjetividade, confere grande margem para o egoísmo, porta de entrada a muitos males da mente.
No campo da linguística, tem-se ao que parece, a maneira mais fácil de comprovar que os ataques do pós modernismo à razão constituem nada mais do que uma tentativa desesperada de justificar o impossível, ou seja, aquilo mesmo que a lógica e os argumentos desmistificam. Tornou-se comum ao longo do século XX o surgimento de filosofias e pensadores que, com base na interpretação dos signos da linguagem, ramo conhecido como semiótica, defenderam que qualquer tentativa de se chegar à verdade, ou mesmo de busca por probabilidade que possa tornar uma conclusão aceitável, esbarra impreterivelmente na textualidade e na subjetividade do autor do texto. Sendo assim, toda forma de apresentação de conclusões, descobertas, análises, ou seja lá o que for que se proponha a defender alguma ideia, é um discurso de poder, viciado pelo ponto de vista do autor. Essa ênfase na textualidade, logo de cara, descarta o fator ético como critério de validação de conclusões. Qualquer cientista sério deve ter compromisso com a verdade, mesmo que não chegue a ela, o fracasso nunca pode ser deliberado. Ainda que isso não bastasse e os pós modernos afirmassem que, mesmo preservando a ética, a subjetividade inconsciente impossibilite a descoberta de qualquer verdade ou probabilidade imparcial, há que se considerar que a aferição de uma conclusão é externa ao sujeito que a oferece. A experiência e a confrontação de descobertas e interpretações múltiplas pode sim, sem dúvida, tornar conclusões válidas, ou na pior das hipóteses, pode fazer com que uma boa dose de probabilidade praticamente seja capaz de desfazer hesitações. Como bem coloca o historiador Carlo Ginzburg ao pensar na pesquisa histórica especificamente, (ou nas Humanidades em geral, poderíamos dizer) corrigir a distorção de um documento, procurando indicar para que lado ou em que sentido essa distorção ocorre, já é uma atividade científica. Aqueles que dizem que história e literatura são a mesma coisa não possuem a menor noção de como atua um historiador, nem tampouco sabem alguma coisa sobre crítica documental. Seria ainda possível que os pós modernos defendessem que mesmo sendo a aferição externa ao sujeito, aqueles que aferem estão igualmente mergulhados na subjetividade, impedidos portanto de aferir imparcialmente. Os avanços da ciência e as descobertas que os próprios pós modernos desfrutam, servem para desmentir tal argumento, que pareceria absurdo até ao senso comum. Mais uma vez, torna-se complicado para um pós moderno argumentar em defesa de sua maneira de enxergar as coisas. O linguista e filósofo alemão Karl-Otto Apel foi lapidar quando formulou o conceito de autocontradição performativa, cilada que faz com que a filosofia subjetivista prove de seu veneno. Segundo Apel, uma vez que um cético pós moderno admita que nada há além de crenças parciais e contaminadas pela subjetividade, é necessariamente obrigado a negar aquilo que ele mesmo pensa, pois sua versão dos fatos não passa de um ponto de vista obscurecido pelo seu próprio achismo, não tendo validade alguma. Um pós moderno defende uma teoria e, quando a conclui, está implicitamente afirmando que tudo o que acaba de dizer é pura subjetividade.
O grande Russell, que me serviu de ponto de partida para essa reflexão, foi em toda sua vida, um otimista no que diz respeito às possibilidades de construir um mundo melhor a partir do racionalismo. Ele costumava dizer que se as pessoas fossem mais racionais, o mundo se tornaria um paraíso em relação ao que era, embora num certo momento, como deixa pressupor o excerto inicial, ele próprio tenha se desencantado um pouco. Hoje em dia, mesmo filósofos sérios como John Gray, zombam de Russell, atribuindo-lhe ingenuidade em sua esperança. Se esquecem que a maior parte de suas análises fori construída entre 1920 e 1965; quando se historiciza Russell e quando se atenta para o fato de que ele acreditava num mundo melhor em comparação àquele que ele viveu, não há ingenuidade alguma em seu otimismo. Se em certo sentido a humanidade está em situação pior do que há 70 ou 60 anos, isso não se deve a uma suposta falha do racionalismo, mas justamente ao crescimento dos irracionalismos. Eu, que me coloco como um seguidor de Russell, talvez seja menos otimista do que ele. Vivemos numa era em que o poder irracional dos meios de comunicação de massa e uma forma doentia de capitalismo que não exclui, mas coopta as massas de um modo absolutamente inadequado e imperfeito, além do crescimento assustador das filosofias subjetivistas, ameaçam seriamente as possibilidades de um racionalismo revigorado, muito mais do que a bárbarie do século XX, por serem muito menos explícitos. De outro modo, dentre muitos exemplos, considero absolutamente racional que nos dias de hoje o ser humano prescinda por completo do consumo de carne, o que traria benefícios ecológicos e espirituais de larga monta, assim como creio que conflitos devidos à particularidades culturais e religiosas poderiam ser resolvidos com base no diálogo racional, que não conhece pátria, credo, cor, ou seja lá qual tipo for de particularismo. Não vejo ingenuidade nisso. A razão é um atributo humano e universal, motivo pelo qual, apesar do pessimismo, ainda assim me inspirei a redigir esta apologia.