Certa vez, em O historiador pedante, escrevi sobre a arrogância intelectual dos historiadores que, em última análise, não deixa de fazer parte da maneira de pensar da grande maioria dos cientistas sociais, segundo eles, detentores de um conhecimento definitivo, apto a desfazer todo e qualquer impasse sobre a experiência humana e capaz mesmo de oferecer o caminho não para um futuro, mas para o futuro. As razões disso, repito, não são fáceis de se explicar.
De um modo geral, campos do saber como a Antropologia e a Sociologia, tanto por seus métodos como por seus objetos de investigação, estão interessadas em discutir aspectos estruturais, e a Filosofia, ao menos em suas grandes correntes, tende naturalmente à criação de sistemas holísticos. Não há necessariamente nenhum equívoco nisso nem o estabelecimento de teorias abrangentes deveria ser motivo de pedantismo, mas no que tange à História, é bem possível que ela venha seguindo uma tendência de perda de identidade. De um lado, um pouco talvez pelo fato dos Annales terem sido mal interpretados, de outro, provavelmente em função do amplo predomínio da historiografia marxista, não apenas em países subdesenvolvidos, mas também devido a um eco que a Europa ainda deixa soar, dentro e fora dela.
A História é um modo de conhecer o mundo, com suas especificidades, mas um modo que não está acima de outros e que se enriquece justamente na busca de interlocução com disciplinas distintas, marcando fronteira em relação a essas. A tentativa de decifrar o passado histórico, até onde for possível, implica na busca de conhecimento, por si só algo que se justifica, não sendo necessário lhe conferir outro sentido, especialmente de ordem prática. Como diria Michael Oakeshott, a confusão entre passado histórico e passado prático é própria daqueles que carregam a pretensão de orientar o continuum do tempo de acordo com uma lógica pré-estabelecida, esta por sua vez, visando atingir no presente-futuro - e neste mundo - um estado totalizante de suposta perfeição. Isso não é História, mas sim política retrospectiva.
O marxismo se arraiga à história na suposição de que existem leis históricas que seguem um padrão permanente e que se repetem, ignorando o simples fato de que o conhecimento histórico só pode ser produzido a partir de mediações e que os grandes sistemas, especialmente quando considerados em termos historiográficos, são criações post facto. Em outras palavras, a historiografia marxista - que é aquilo que interessa neste artigo - não distingue conjunturas/estruturas de eventos, sendo esses últimos apenas excrescências que se perdem e se conformam a um arcabouço totalizante advindo daquelas. É bem possível que decorra de tal forma de entendimento o total desprezo do marxismo para com o indivíduo. Ora, é bastante contraditório que uma filosofia pretensamente atenta à história faça vistas grossas às evidências históricas: o problema do totalitarismo soviético não foram as políticas ou as pequenas diferenças de compreensão da ideologia por parte desta ou daquela liderança comunista, foi o próprio comunismo, uma teoria totalitária per se, como já podia fazer compreender qualquer análise séria da ideia marxiana e sobretudo das evidências históricas resultantes de sua aplicação prática. O problema do Brasil hoje é só um: é o comunismo, e as evidências tantas que permitem classificar o atual governo como ditatorial saltam aos olhos. É lógico que o PT e seus seguidores não podem admitir isso - nunca um ditador assim o fez -, pois estaria condenando a si mesmo.
Não há dúvida de que para manipular a realidade de acordo com seus interesses práticos, uma ditadura age basicamente em duas frentes: a) nega todas as evidências que depõem contra si e procura jogá-las na conta daqueles que a combatem; b) cria uma conduta (imoral) própria que abole a previsibilidade das leis, estratégia que funciona tanto para confundir a população como para dar curso mais fácil à dominação.
É preciso lembrar que as leis, embora existam para coordenar à vida em sociedade, atuam fundamentalmente na esfera do indivíduo: elas garantem a observância dos trâmites corretos e regulatórios que perfazem os acordos voluntários entre indivíduos livres e perseguidores de suas próprias escolhas. Não é por acaso que no regime comunista não pode haver liberdade, dado que a condição de ser livre vai na contramão dos interesses práticos da ditadura, colocando em risco a sustentação da totalidade ditatorial.
Nas últimas décadas o marxismo descobriu que a tomada de poder nas sociedades modernas de massa requer a elaboração e a perpetração de uma cultura marxista, no que seus adeptos lograram enorme sucesso. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o regime petista cairá, entretanto o combate contra o esquerdismo não terá atingido seu fim, já que o esquerdismo responde por um pensamento que não se molda somente a partidos políticos, podendo se reorganizar dentro de qualquer espaço que lhe for dado a caber. Uma das formas que esse combate deve tomar - e nesse sentido, mesmo sendo difícil escapar do pragmatismo, será melhor adotar uma postura que tenha como escopo preservar as liberdades - diz respeito à mudança do estatuto epistemológico predominante na História e na historiografia: um ramo do conhecimento que é essencialmente investigativo e inferencial, precisa necessariamente estar focado em evidências e uma visão histórica responsável que não busque outra coisa senão o conhecimento, não pode se manter devota de ideologias, quanto mais daquelas cuja natureza é equivocada e ditatorial.