A tal Comissão da Verdade teve sua instauração anunciada pelo governo federal e causou grande barulho perante boa parte da sociedade. A justificativa que mais enaltece a necessidade da Comissão bate na tecla do direito à memória e da consolidação da democracia no Brasil. Sinto informar aos desavisados - e estes são tantos! -, mas não passa de lugar comum do discurso, balela das mais hipócritas.
No que tange à questão da memória, ainda que a atuação da Comissão possa resgatá-la em alguma medida - e cabe salientar que a modificação da proposta inicial que contemplava somente a apuração dos crimes cometidos pelos militares, escamoteando as ações, também elas totalmente criminosas, dos revolucionários esquerdistas, foi de extrema importância -, é algo que a pesquisa histórica independente poderia realizar com com competência igual ou superior, caso fosse mais incentivada no país e se houvesse melhor estrutura oferecida aos historiadores.
Soa estranha a suposta tentativa de resgate da memória utilizada como retórica em um país que sabidamente não guarda lugar de respeito e de destaque a tudo aquilo que tem capacidade de fazer o passado reverberar. Inúmeros monumentos públicos brasileiros sofrem com o abandono completo e são diariamente alvos do vandalismo; uma quantidade incontável de registros históricos e arqueológicos nem de longe dispensam a atenção e o cuidado devidos, zelados, quando minimamente possível, no mais das vezes graças ao improviso e à iniciativa individuais; arquivos oficiais sobrevivem com pouca verba, carentes de tecnologia, infraestrutura e alocados em instalações precárias. Onde está o respeito pela memória nestas situações recorrentes, que abrangem recortes históricos tão mais extensos do que o escopo da Comissão?!
Quando se fala na ação da Comissão como contributo da consolidação democrática, a estupidez se revela ainda pior. Apenas o analfabetismo político pode levar alguém a crer que um grupo ínfimo de pessoas designado pelo governo seja capaz de promover alicerces mais sólidos para a democracia.
Democracia que funciona bem é sinônimo de cultura democrática e cultura democrática é algo que só pode ser gestado na própria sociedade ao longo do tempo. Democracia de fato se faz com o cidadão inserido politicamente, no cotidiano e na comunidade, em debate permanente com outros cidadãos, com as instituições e órgãos do governo. Em um país no qual Aristóteles, Tocqueville ou Bobbio são meros desconhecidos, é difícil supor que se esteja perto de alguma consolidação democrática. Em uma nação muito mais de súditos que se deixam levar pelo canto de sereia do populismo do que de cidadãos cônscios de deveres e de direitos, democracia consolidada ainda não passou de miragem distante. Perante uma população que concedeu o poder à corja petista mais duas vezes após o escândalo do Mensalão e no qual a corrupção corre solta - e depara-se aqui com uma constatação que não por acaso também tem a ver com (falta) de memória -, a democracia não é um valor tido em boa conta. Em um Brasil de universidades assoladas por visões de mundo falhas e aberrantes, com professores e alunos que ainda se prestam a crer nos marxismos e foucaultianismos da vida, a democracia é vista como uma "manipulação burguesa".
É correto afirmar que a atuação da Comissão pode dar voz aos que foram perseguidos pela ditadura militar, e isso seria um elemento de democracia, mas já se sabe o que pensavam os opositores do regime, uns para o bem, outros, aqueles guerrilheiros que só desejavam a derrubada de uma ditadura para implantar a de um tipo diverso, mas igualmente ditatorial no lugar, para o mal. E depois de quase trinta anos do fim do regime militar e do início da imperfeita democracia brasileira, se existe um direito que todo brasileiro possui é o de defender qualquer credo político. É preciso uma Comissão da Verdade para resguardar tal direito?
À guisa de encerramento e trocando em miúdos, a Comissão da Hipocrisia não é nada além do já conhecido histrionismo autoindulgente do governo federal e de um joguete ideológico da velha esquerda, aquela que não tem moral nenhuma para falar em democracia. Em um país cujo governo discursa a favor da democracia e dos direitos dos
oprimidos ao mesmo tempo que oferece asilo político a um terrorista
assassino do porte de Cesare Battisti, a hipocrisia assalta a verdade. Resultado prático: consumo de verba pública. É a cara do Brasil!