Em recentíssimo artigo publicado na Folha de São Paulo, Reinaldo Azevedo, evidentemente em tom de ironia, afirmou que petistas devem ler Marx. Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte o filósofo de Trier, lá pelas tantas, escreve que o monarca em questão "havia se tornado vítima de sua própria concepção de mundo". A "história se repetia como farsa", até que a revolução proletária, de acordo com o entendimento do autor, estivesse em ponto de bala para colocar as coisas no rumo certo.
Diante de mais uma gritante incapacidade do PT de perceber o que se passa debaixo de suas fuças, Azevedo recomenda aos partidários da sigla a leitura marxiana a fim de que abram os olhos, mas mesmo que o façam, tal não irá ocorrer - nisso reside a ironia -, pois no esquematismo dual e maniqueísta de Marx, como também é válido para os petistas, não existe o "homem médio", que não é nem aquele opressor que reage, tampouco o proletário que revoluciona. É, ao contrário, o verdadeiro sujeito da história, aquele que constrói a civilização e a repõe quando o caos se instala. Esse cidadão comum, cuja ausência na obra de Marx já era denunciada por Bakunin, vicejou livremente nos países que adotaram o capitalismo e o caminho político parlamentar, desmentindo categoricamente as profecias do teórico comunista.
Se, por um lado, o viés irônico do artigo de Azevedo está muito bem colocado, por outro, não há ironia alguma em aconselhar não só petistas, mas esquerdistas em geral, a lerem aquele que consideram como seu mestre intelectual. Sempre defendo a ideia de que algo em torno de sete a cada dez esquerdistas nunca leu nada que vá muito além do Manifesto Comunista e do 18 de Brumário..., obras curtas, dotadas de linguagem direta e fácil compreensão, o que pode ser comprovado quando se debate com os mesmos. A ignorância dos próprios esquerdistas em relação a Marx explica, em certa medida, porque ainda se atrelam ao marxismo e se posicionam como sendo de esquerda. É impossível concordar com Marx se a pessoa, de fato, conhece Marx. Quem o descarta depois de conhecer seu pensamento presta um bem inestimável a si mesmo e à humanidade, embora não se trate de tarefa nada fácil para quem continua acreditando que o esquerdismo tenha algo de positivo.
A título de ilustração e de amostragem, certa ocasião, durante um debate a respeito da Revolução Russa de 1917 com uma professora marxista-leninista, perguntei a ela se a promessa do comunismo como capaz de instaurar o melhor dos mundos não se apresentava falaciosamente e contraditoriamente à ditadura do proletariado, etapa anterior à extinção do Estado (e da sociedade), porquanto um regime ditatorial, com centralização de poder e consequente necessidade de planejamento, se manifesta em total contraste com o télos comunista. Ela me respondeu, com a pretensão de ser esclarecedora, dizendo que a ditadura se faria por toda uma classe, o que me fez notar seu desconhecimento não somente em relação a Marx, mas também sobre Lenin. O primeiro, restrito aos limites de um materialismo tosco, não deixou nenhuma teoria convincente das classes, já o segundo, o que é pior ainda, além de defender a revolução sem a necessidade do proletariado, a empreendeu na prática. Lenin levou a Rússia à guerra civil, massacrou os sovietes, estatizou a economia e nem por um único momento mostrou qualquer reticência ao comandar o genocídio de todos aqueles que julgava como elementos contrarrevolucionários, inclusive artistas e intelectuais. Nem mesmo se depois disso o paraíso terreno estivesse completo (verificou-se o total oposto disso) o derramamento de sangue seria justificável. Esquerdistas, contudo, parecem enxergar no ser humano apenas um meio para a revolução violenta...
A morte de Lenin em 1924 fez de Stalin o líder da já existente URSS, escancarando de vez o totalitarismo comunista. A professora, do mesmo jeito que todos os marxistas atuais, afirmou que o ditador georgiano desviou a revolução marxista-leninista de seu curso. Esse devaneio faz pressupor que mesmo diante das tantas tragédias que sempre estiveram lado a lado com a engenharia social comunista, um dia, em um futuro qualquer, a coisa ainda pode dar certo... Se nos saíssemos lembrando que a ideia de conduzir a sociedade por um curso pré-determinado por si só é totalitária, já não seria necessário ir adiante. Acontece que, além de tudo, o totalitarismo de Stalin não representou um rompimento com Marx coisíssima nenhuma! Se não fosse por aquilo mesmo de genocida e totalitário que Lenin promoveu desde o advento revolucionário, também nesse aspecto é possível levantar os equívocos da teoria de Marx para proceder com correção à análise histórica. Assumindo a primazia da base material-econômica sobre a superestrutura, exatamente como Marx pensava, tem-se que o poder emanado da figura de Stalin é um fator político e, por conseguinte, pertencente à superestrutura, logo, subordinada à base material. Ora, considerando que Lenin havia anteriormente consolidado a organização estrutural da URSS, o stalinismo só pode ter sido a consequência direta do que foi plantado a partir de outubro de 1917, caso contrário, uma vez completado o arranjo comunista, cuja estrutura de comando se dá a partir do econômico-material, assim como a perfeita harmonia prometida por tal arranjo, como pensar que o elemento político sobrepujou o econômico? É impossível validar a teoria de Marx ao mesmo tempo em que se tenta negar a filiação marxista do stalinismo. Ou Marx estava errado e não é possível admitir o primado do materialismo histórico - o que derruba por terra seu pensamento - ou o stalinismo manifestou o desfecho de uma teoria que conduz inexoravelmente ao totalitarismo, das duas uma!
Marx, além de não ter estabelecido uma teoria das classes, igualmente se mostrou incapaz de conceber uma teoria do Estado. Em Lenin, o completo desprezo pela via democrática, tributário das teses marxianas, ganhou contornos reais. Stalin foi o resultado natural da aplicação prática do marxismo. Compreender os enganos de Marx é necessário para se livrar de suas ideias sanguinárias, um exercício de sanidade mental, responsabilidade política e coragem intelectual. A despeito da dificuldade que uma mudança de postura política e intelectual envolve, não é inimaginável supor que um esquerdista possa realizar esse tour de force, (muitos personagens já o fizeram). Há que se despir do orgulho e, se é verdade que ao menos uma centelha da dimensão espiritual permaneça como característica da condição humana, ainda que em uma mente esquerdista, qualquer um está apto a se libertar de tão execrável filosofia.