1. No ano de 1986, o historiador Carlo Ginzburg provocou frisson com seu ensaio "Sinais: Raízes de um paradigma indiciário". Desde então, a temática levantada pelo texto e pela própria obra do autor, na qual ele sempre usa a micro história como suporte, tem sido debatida em suas implicações teóricas, que são riquíssimas e de enorme abrangência. Por outro lado, no entanto, pesquisas historiográficas baseadas em tal arcabouço teórico parecem não ter tido, ao longo desse tempo todo, tanta recorrência, proporcional ao alarido trazido pela reflexão quando a mesma veio à tona, apesar de nomes importantes como Robert Darnton, Natalie Zemon Davies ou Giovanni Levi, que se não são discípulos de Ginzburg, no mínimo, abriram com ele vários caminhos de interlocução. De qualquer maneira, em linhas gerais, o que se observa ainda hoje é o predomínio de explicações tributárias das causas gerais, dos "processos históricos", entendendo-se essa expressão quando associada com quadros esquemáticos estruturais, sem conceder lugar para o que não se enquadra nos moldes preestabelecidos que invariavelmente acompanham tal linha de pensamento. Ainda que a micro história, em última análise, tenha sua busca voltada para a tipicidade, o "X" da questão é: onde podemos encontrá-la?
2. O que tenho em mente é levantar uma bola. Quem estará disposto a chutá-la com um mínimo de direção? Tomemos um dos afrescos de Giotto pintados na Basílica Superior de Assis (Itália), aquele que narra a vigésima cena da vida de São Francisco (imagem acima). É sabido que em 2011, Chiara Frugoni, historiadora e italiana como Ginzburg, descobriu um detalhe, um pormenor revelador que ficara oculto por oitos século na pintura de Giotto. Trata-se da face em perfil de um demônio, cujas feições se caracterizam pelo sarcasmo e pelo sorriso levemente irônico (imagem abaixo). Feita a descoberta, quem se dispõe a observar o afresco com atenção durante alguns segundos, nota que o detalhe foi incluído por Giotto nas nuvens bem ao centro da obra, estando o demônio do lado direito delas.
Por que o artista teria pintado esse pormenor de modo a deixá-lo implícito? Por que o teria feito aproveitando-se das nuvens? Não é segredo o fato de que, como pré-renascentista, Giotto lançasse mão de códigos figurativos em suas pinturas, tanto que essa estratégia foi largamente utilizada por pintores que o sucederam, como Botticelli, Da Vinci e Sanzio. Além de serem portadoras de mensagens, nem sempre aceitas pelo dogma católico, se pensarmos na teoria crítica da Arte proposta por homens como Aby Warburg e Ernst Gombrich, nos depararemos com reflexões a respeito dos vínculos entre forma e função na arte.
3. O efeito estético de uma obra de arte é dado pela técnica do artista, empregada de acordo com a escola à qual ele pertence e também com suas intenções. A busca por originalidade, embora não se relacione a princípio com questões estéticas do ponto de vista morfológico, pode se aproximar do tema à medida em que um artista procura dar seu toque pessoal à obra. Falsários são figuras comuns ao longo da história e seria interessante perguntar se algum deles, antes da descoberta de Frugoni, por acaso percebeu o demônio no afresco de Giotto. Quem possuir, por exemplo, um souvenir não muito recente de Assis, especialmente uma reprodução impressa da Vigésima Cena..., poderá tentar observar se o pormenor consta da cópia. É muitíssimo provável que não.
Para retomar Warburg, Gombrich e Ginzburg, o que define a marca de um mestre da arte não são seus caracteres gerais, seus padrões, mas o detalhe, o pormenor que, estando oculto, uma vez descoberto, traz revelações e indagações. Constatar uma falsificação, na melhor tradição que remonta a Lorenzo Valla e passa por Conan Doyle, se dá no nível dos detalhes. Para o artista, é uma forma de originalidade e de auto proteção contra os falsários, para um médico, um caminho profícuo na tentativa de curar doenças, ao invés de apenas eliminar sintomas, para um investigador, a chave que pode desvendar um crime, para os historiadores, uma maneira das mais sugestivas no objetivo de teorizar os exemplos que a história fornece e propor caminhos de compreensão acerca do passado e do presente. Esse é o paradigma indiciário, no qual nada é dado a priori, sendo necessário criar um trabalho de composição e imaginação criativa por parte do historiador. É como montar um quebra cabeça em que as peças parecem não manter conexão entre si.
4. As explicações para a presença do detalhe demoníaco no afresco de Giotto são várias: é possível que a criatura - ou sua figuração - represente um desafio post mortem para Francisco, ou seja, afastar o demônio seria abrir o caminho dos céus, não apenas a ele mesmo, mas também a seus discípulos e devotos que passaram a orar em seu nome. Essa ideia se coaduna com a disposição geral dos elementos no afresco, mas a representação pode prestar referência a algo além da criatura em si, estabelecendo uma relação com os chamados Estigmas de São Francisco: o homem simples que amou seus irmãos para além dos pecados e defeitos dos seres humanos, mas cuja fé e retidão são capazes de aplacar o Mal. São interpretações iniciais que ainda carecem de rigor científico e que futuramente poderão, através de pesquisas, trazer contribuições importantes.
Resta ainda, entretanto, uma discussão que invade o terreno da Antropologia e da Psicologia: coloquei acima como pergunta o fato da figura demoníaca ter sido representada nas nuvens. De início, parece uma banalidade, já que o demônio poderia estar em qualquer ponto do afresco sem que isso implicasse em mudanças no que foi fruto de reflexão até aqui. É banal só aparentemente..., não nos esqueçamos do pormenor que revela e, mais do que isso, levanta indagações...
5. Quem, quando criança, ou mesmo depois, jamais olhou para as nuvens no céu e tentou lhes atribuir alguma forma reconhecida? Certamente, todos já o fizeram e como se trata de um exercício simples e inocente, totalmente espontâneo, pode-se supor que transcenda tempo e espaço. Além disso, sabendo-se que observar o céu é uma prática remota, comum em sociedades chamadas tradicionais, a tese se reforça e assume um caráter bastante abrangente, vinculado a formas de religiosidade, xamãs e funcionamento da mente.
Ao longo da história, encontramos representações as mais diversas nas quais não apenas as nuvens em si marcam presença, como aparecem associadas a alguma forma (figuras seguintes).
Vincent Van Gogh - Noite Estrelada (1889). Nuvens em espiral. A mente do pintor holandês sempre esteve envolta em mistérios. Hoje, suscita estudos na Física e na Matemática, além da Psicologia. |
Capa do álbum Brave New World - Iron Maiden (2000). Eddie toma forma a partir das nuvens na ilustração de Steve Stone e Derek Riggs. |
Podemos pensar em duas ideias: a primeira delas é que, por serem efemérides em termos de duração e impermanentes em sua própria forma, além de, evidentemente, remeterem ao elemento celestial, o ser humano, inconscientemente, busca reconhecê-las por meio de um filtro capaz de conferir às nuvens alguma similaridade com o terreno, com o material, com o concreto. Dá-se a esse mecanismo mental, já estudado por cientistas como Carl Sagan (que não é exclusivo da associação de coisas reconhecíveis com nuvens), o nome de pareidolia. Apesar de explicar a motivação, ele não esgota a questão que apenas estou pretendendo abrir.
Desse entendimento, deriva o segundo, qual seja aquele que nos faz supor essa quase necessidade de transformar, na esfera do imaginário, massas amorfas de vapor d'água em coisas reconhecíveis, como um arquétipo.
Nessa aparente reviravolta, reencontramos Giotto em outro sentido além do contextual e do artístico e invadimos a esfera das ciências da mente. De um jeito ou de outro, não abandonamos a busca do pormenor revelador. Os segredos estão nos indícios.
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