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sábado, 18 de março de 2017

Os tais direitos


Em seu livro imprescindível, A rebelião das massas, José Ortega Y Gasset foi ao ponto quando afirmou que o homem das sociedades de massa, esse homem contemporâneo, que se debate na vã tentativa de encontrar um lugar no mundo sem olhar para dentro de si, sem saber qual o significado da liberdade e de onde ela vem, é um homem que apenas reivindica direitos esquecendo-se de que para tê-los, alguém necessariamente precisa concedê-los. Somente clamar por direitos deixando de reconhecer deveres conduz a sociedade de massa a uma anomalia na qual inexiste qualquer nobreza de propósitos.
Onde, além da massificação contemporânea, as pessoas padecem da falta de apreço pelo conhecimento e mergulham em um estado contínuo, letárgico e modorrento de ignorância quase tido como natural, a situação é ainda pior.
É um paradoxo que no presente hi-tech da contemporaneidade, o homem massificado e ignorante viva em um estado no qual a cultura mal consegue se diferenciar da natureza, um quase retorno aos primordiais tempos em que prevaleciam largamente a lei do mais forte e o puro instinto. Sempre que imerso no desespero da sobrevivência sem propósitos e na carência do bem-estar que o cultivo do intelecto é capaz de conferir, qualquer farolete de luz, mesmo que leve a paragens nada aprazíveis, irá servir como orientação (e provocará, inexoravelmente, a catástrofe). As seitas que descobriram essa fraqueza na mente do homem das sociedades de massa obtiveram sucesso na divulgação, na disseminação e na implantação de regimes políticos cuja promessa de resolver todas as questões humanas, aqui e agora, como num passe de mágica, seduzem facilmente uma turba de ignorantes. A propaganda de massas é a chave para conquistar as pessoas por seus corações.
Talvez a coisa mais difícil para alguém imbuído de boas intenções seja convencer um incauto de que há quem o esteja enganando da maneira mais pérfida possível. É extremamente trabalhoso do ponto de vista psicológico refletir e estar constantemente reexaminando os próprios pensamentos, sobretudo se não são autônomos, se foram enxertados e transmitidos de modo a propor que não é preciso muito mais do que delegar esperanças (mesquinhas) e a consecução dos tais direitos a uma liderança autoproclamada. O homem de massas é preguiçoso porque foi privado de sua individualidade, de sua vida interior, do afã de realizar esforços próprios para atingir objetivos e manter responsabilidade sobre suas escolhas. Presa fácil, ele prefere ouvir discursos que lhe colocam como vítima de um sistema e de um grupo de usurpadores que agem única e exclusivamente para deixá-lo distante dos direitos. Para mudar esse quadro, basta se revoltar contra o suposto vitimismo e deixar que ele se transforme em ódio. Uma vez no poder, aquela liderança que conquistou seu coração, que encantou seus ouvidos, que insuflou seus sentimentos mais emotivos e irascíveis e que lhe fez se sentir alguém no meio da massa, por ser a detentora única do entendimento acerca do devir da história, se encarregará de garantir um reino de prosperidade e harmonia eternas. Neste mundo.
O mantra dos tais direitos atinge não só aqueles que, por sua incapacidade intelectual, são mais facilmente enredados na teia do discurso ideológico, mas também (e até em maior quantidade) pessoas que aparentemente não vivenciam o universo das ideias politicas em seu cotidiano. Sob um ar blasé de não afetação, aprioristicamente distante do embate na ágora, de repente, essas mesmas pessoas estão repetindo de maneira totalmente inconsciente o discurso da liderança popular, o que contribui decisivamente para lhe outorgar pertinência, não evidentemente por trazer à tona entendimentos profundos ou por se aproximar de verdades, mas pelo fato de que uma mentira sedutora penetra por osmose no imaginário e se transmuta em suposta Verdade à velocidade da luz. É um processo silencioso e imperceptível para a maioria e resulta, para aqueles que conseguiram se manter imunes, em um afastamento forçado, defensivo, de autopreservação, mas perverso, pois acarreta em estigmatizações.
Quem acredita ser dono da chave da História só pode manter influência às custas da mentira, bem como participar de disputas pelo poder e/ou se manter nele lançando mão de estratégias totalitárias, no mínimo autoritárias. Será possível que o homem na sociedade de massas tome consciência de sua individualidade, que adquira propósitos dotados de algum caráter de nobreza, que seja capaz de exercer sua liberdade com o devido e indispensável grau de responsabilidade? Tem sido cada vez mais utópico acreditar que sim, mas se não restar uma centelha disso, então não haverá mais nada a fazer.

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