A resenha que se segue foi redigida no ano de 2004, durante o 5° semestre do curso de História na Pontifícia Universidade Católica/SP, como forma de avaliação da disciplina "Tendências da Historiografia Contemporânea". O texto possui relação íntima com a pesquisa de Iniciação Científica que eu empreendia naquele momento e foi publicado com a devida autorização no site Historianet (www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=808). Foi então que pensei, "ora por que não postá-lo também neste blog"? Para obter informações sobre a vida e a obra do autor do livro resenhado, ver o excelente Entre mito e política, do próprio Jean Pierre Vernant. Os números que por vezes aparecem no decorrer da leitura dizem respeito às notas bibliográficas que constam do final da resenha. Com algumas adaptações feitas no intuito de melhorar a leitura no espaço que vos "fala", ei-lo, o texto, útil talvez, em era de irracionalismos.
O objeto da presente resenha é o livro As origens do pensamento grego1, do destacadíssimo especialista em Grécia Antiga, Jean-Pierre Vernant, autor de inúmeras obras a respeito da Antiguidade grega, que abordam questões como a mitologia, o pensamento, o teatro e a política, entre outros temas relevantes.
Segundo minha compreensão, a perspectiva analítica de Vernant, como pensador que sempre manteve proximidade com a Escola dos Annales2, prima por recorrer de maneira profícua à interdisciplinaridade, mantendo assim um diálogo com áreas do conhecimento auxiliares da história, a saber, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e até mesmo a Arqueologia, sobretudo quando o autor se debruça sobre tempos mais remotos, casos dos períodos Pré-Homérico (séculos XX - XII a. C.) e Homérico (séculos XII - VIII a. C.).
A grandiosa contribuição da obra consiste nas discussões que suscita sobre a formação do pensamento racional na história da Grécia Antiga. Ao buscar uma explicação verdadeiramente histórica para a razão grega, característica do Período Clássico (séculos V e IV a. C.), Vernant inicia seu estudo remontando a fenômenos ocorridos cerca de quinze séculos antes, quando povos de origem indoeuropeia começam a chegar em território grego. Aqui, novamente podemos perceber ecos da historiografia dos Annales nas pesquisas desse autor, já que uma concepção historiográfica que procura abordar os fenômenos históricos levando em conta o nível mais profundo das mentalidades, necessariamente deve procurar balizá-los dentro de uma temporalidade de longa duração.
Nesse sentido, é já por volta do século XX a. C. que a civilização micênica, oriunda dos pelasgos, habitantes primitivos da Grécia, passa sistematicamente a entrar em contato com povos indoeuropeus que incursionam na Hélade. A partir desse momento começam a se observar mudanças significativas que afetam a história da Grécia e que acabarão por determinar outras formas de organização política, econômica, social e cultural, bem diferentes daquelas vigentes até então.
No final do Período Pré-Homérico (século XII a. C.) os dórios chegam à Hélade. Povo guerreiro por excelência, conhecedor da metalurgia do ferro, algo inédito na Grécia até aquele momento, são os responsáveis pela Primeira Diáspora Grega, episódio no qual os habitantes do sul da península Balcânica se espalham por vastos territórios em função do terror espalhado pelos dórios.
Até essa época, o mundo grego tinha sua organização político-administrativa voltada em torno do palácio do ánax, o grande rei. Com a chegada dos dórios, esse sistema dará lugar aos genos, um tipo de organização social fundada sob linhagens de parentesco que determinava solidariedades políticas e judiciais, precursora da cidade3. É também nesse momento que surge na Grécia Antiga uma primeira forma de sabedoria humana, de reflexão moral e de especulação política já um pouco mais distanciadas do mito.
Na aurora do século VII a. C., o crescimento populacional, a dispersão dos gregos por toda a bacia do Mediterrâneo e a partilha dos genos, - a Segunda Diáspora Grega - dão origem à mais importante instituição da antiguidade grega, aquela cuja forma de organização política, administrativa, religiosa e militar, dará a tônica da história da antiga Grécia durante seu apogeu e crise, o Período Clássico, que abrange os séculos V e IV a. C. Trata-se da pólis.
Nessa parte de seu brilhante estudo, em um belíssimo capítulo denominado "O universo espiritual da pólis", Vernant concentra a reflexão sobre esse mesmo universo, marcado essencialmente pela ligação íntima entre logos, a razão e a atividade política. É um período no qual a vida pública - refletida no debate político na ágora, nas trocas comerciais realizadas no mercado (asty) e o consequente aparecimento das moedas, na laicização e expansão das formas de religiosidade ao espaço externo, até então assunto privado, restrito ao interior dos templos e na organização racional e geométrica do périplo urbano - adquire uma importância cabal para os antigos gregos.
Assim, o pensamento racional vai se elaborando e se desenvolvendo em torno desse novo tipo de organização que afeta todas as dimensões históricas. É nessa época que os filósofos da Escola de Mileto e, posteriormente, os pitagóricos e os sofistas, formulam pensamentos que visam explicar a formação do Universo, não mais a partir dos mitos, como por exemplo em Hesíodo, (Teogonia e Os trabalhos e os dias) onde o sobrenatural, o divino e a hierarquização entre homens e deuses definem o mundo, mas sim a partir de elementos passíveis de racionalidade, como a água, o ar, ou o número.
Tendo chegado a esse ponto, cumpre-se por bem antes de continuar, fazer duas importantes considerações. A primeira delas é ressaltar que seria errado pensar que a razão abandona por completo os mitos, ao contrário disso, o pensamento racional, muitas vezes, resgata os elementos míticos de forma a lhes dar uma reinterpretação política. Na atividade militar, o herói, figura singular presente nas epopéias, é, no tempo da pólis, transformado no demos, isto é, a coletividade de cidadãos, à qual é atribuída a heroicidade e a honra das batalhas, aludindo desse modo, aos mitos da bela morte e da autoctonia ateniense, exemplos que o bom cidadão deve seguir para que se torne imortal na memória cívica. Como bem escreve Vernant, existem zonas de sombra em que a razão não possui poder de explicação, terreno onde os mitos sobrevivem e encontram refúgio seguro. Portanto, como já discutido anteriormente, no Período Clássico os mitos não servem mais para explicar a gênese do Universo, mas ainda são muito úteis para legitimar e dar exemplos no campo da ação política, atividade de caráter racional.
Em segundo lugar, essas reflexões são pertinentes apenas quando se pensa em Atenas e em algumas outras cidades de sistemas políticos semelhantes, em outras, caso de Esparta, as características são bem diferentes e não são objeto do estudo em questão.
Seguindo adiante, Vernant discute a respeito da crise da cidade, iniciada já no século V a.C. com a guerra do Peloponeso e a derrota ateniense e agravada no século seguinte pelos sucessivos reveses da principal cidade grega, além do quadro geral de fragmentação em todo o mundo helênico. O problema que se coloca é como entender a pólis, instituição que deve manter a harmonia da sociedade conservando seu aspecto de unidade, em contraponto com a multiplicidade de categorias sociais. Daí advém o conflito entre Eris X Philia, discórdia contra harmonia, resultando em um dos temas mais debatidos pelos historiadores da Grécia Antiga, ou seja, a democracia ateniense é algo que deve ser compreendido indissociavelmente ou não de seu imperialismo e de sua estabilidade política?
O autor defende a idéia de que se deve buscar a chave para essa resposta na compreensão do pensamento filosófico do século IV a. C., pautado pela discussão sobre a cidade ideal e sobre as formas de conhecimento mais eficazes no intuito de manter a coesão política e a ordem cívica, reflexo direto do contexto de decadência em que Atenas se encontrava. Aqui, duas figuras de peso travam um embate que até hoje alimenta discussões intensas no campo da filosofia e da história das ideias e do pensamento; Platão, discípulo de Sócrates e sistematizador de todo o seu legado oral, defensor da Filosofia e da busca do Bem como caminhos únicos para a retidão do homem, e Isócrates, mestre da retórica, para o qual as discussões filosóficas apenas contribuíam para idealizações menos importantes no dia-a-dia da pólis.4
O leitor talvez já tenha podido perceber que em As origens..., Vernant traça um perfil rico e abundante em sutilezas, que considera a história da cidade grega desde tempos bem anteriores ao seu próprio surgimento, para daí resgatar minuciosamente cada elemento histórico específico, cada quadro de pensamento, cada personagem significativo partícipe do longo processo histórico-espiritual que fez desembocar na pólis clássica. Tal rigor analítico e riqueza de detalhes e dimensões, faz parte do argumento em defesa do pensamento racional, de matriz grega e pilar fundamental do Ocidente, não como algo dado por uma simples revelação pontual ou por um capricho de ordem transcendental, ou mesmo socioeconômico, como querem marxistas pouco críticos ou pós modernos obsecados por (pseudo) crítica, mas baseado em antecedentes históricos, de modo a ter que se considerar conjuntamente aspectos políticos, econômicos, filosóficos, psicológicos, culturais e mentais.
Assim, seguindo a reflexão de Vernant, observa-se que a lógica da argumentação e a coerência que o autor busca, visam refutar a tese de que o pensamento racional floresceu na Grécia Antiga obedecendo ao "milagre grego", que teria escolhido os helenos por uma espécie de gênio metahistórico que concebera a estes a primazia de pensar racionalmente, apartando-os radicalmente da mitologia. Antes, foi o lento desenrolar da história, evidentemente não-lógico aprioristicamente e, por assim dizer, a ação humana que levou ao universo racional da pólis.
Se o elemento político nos salta aos olhos como o mais substancial e emblemático nesse processo, é porque o logos mantinha em tal contexto uma estreita relação com a atividade política, que se estendia inclusive ao campo religioso - daí a religião assumir essencialmente um caráter cívico na Antiguidade Clássica, característica que duraria até o advento da religião cristã. Cabe lembrar inclusive, que foi o próprio declínio do ideal cívico-político que custou a degradação e o desabamento da pólis.
Quando Aristóteles definiu o homem como "animal político", quis exatamente dizer que a razão é fundamentalmente política, ligada às novas formas de organização da ordem humana no interior da cidade, mas não que o processo histórico que a ela conduziu não comportasse várias outras dimensões. A razão é a arte do político que age sobre os homens, filha direta da pólis.5
1. VERNANT, Jean-Pierre, As origens do pensamento grego, Rio de Janeiro, Difel, 2002.
2. Ver nesse sentido o livro de BURKE, Peter, A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia, São Paulo, UNESP, 1997.
3. Para tanto, ver o verbete "genos", em MOSSÉ, Claude, Dicionário da civilização grega, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, pp. 145-6.
4. Uma discussão muito importante sobre isso pode ser encontrada em JAEGER, Werner, Paidéia, São Paulo, Martins Fontes, 2001, pp. 475-998, 1177-213 e 1253-374 .
5. Nesse ponto, a ressalva única ao estudo de Vernant, já que o autor não considera a razão como transformadora da natureza, mas, dado seu cunho político, permite o agir humano. Nesse segundo ponto, obviamente Vernant está correto, porém, em seu livro Uma história da razão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, o filósofo François CHÂTELET apresenta argumentos bastante convincentes quanto ao aspecto transformador da razão, - legado grego - além da atividade cívico-política, até porque as transformações puderam partir justamente da dimensão política, para daí se espraiarem em direção a outras áreas. Talvez a razão não transforme a natureza diretamente, mas proporcione mudanças extremamente significativas nas relações dos homens com a mesma e com o mundo. Ver sobretudo as páginas 15-33 da obra de CHÂTELET, embora o livro inteiro seja importante.
BIBLIOGRAFIA
obra analisada:
VERNANT, Jean-Pierre, As origens do pensamento grego, Rio de Janeiro, Difel, 2002.
obras de referência:
BURKE, Peter, A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia, São Paulo, UNESP, 1997.
CHÂTELET, François, Uma história da razão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.
JAEGER, Werner, Paidéia, São Paulo, Martins Fontes, 2001.
MOSSÉ, Claude, Dicionário da civilização grega, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
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