Um estudante do sétimo semestre do curso de Sociologia vai até o balcão de uma papelaria para comprar uma caneta esferográfica e um líquido corretivo. O dono do estabelecimento se formou há muitos anos em Biologia, concluiu doutorado e aposentou-se do cargo de botânico em uma grande instituição de pesquisa. Além de microempresário, tornou-se ávido leitor de livros de Humanas. O diálogo começa com o estudante ideólogo perguntando sobre o valor da compra, seguido pela resposta do cientista microempresário, obedecendo até o fim a mesma alternância.
- Quanto é?
- Ficou em um total de oito Reais e trinta centavos.
- Caro, hein? Fazer o que? É o capitalismo.
- Desculpe, mas não está caro, é o preço de mercado.
- O capitalismo age assim, ele promove lucro para poucos e pobreza para muitos.
- Meu amigo, não é por nada, mas preciso atender outros clientes...
- Claro, claro, quanto mais vender melhor, mais lucros! Capitalistas só pensam em ganhar dinheiro!
- Olhe, primeiro que esse termo "capitalismo" é genérico e ao mesmo tempo estigmatizado. Quem o usa quer explicar tudo, mas não explica nada. Se quiser falar em "economia de mercado", estará sendo mais preciso, mais específico. Segundo, estou fazendo meu trabalho.
- O mercado é a expressão da exploração capitalista! O senhor é o que, vendedor de canetas? Não enxerga as mazelas sociais, não tem noção da realidade, não percebe a alienação.
- Sou biológo aposentado, se quer saber.
- Ahhh, biólogo, está explicado! Não é um intelectual.
- Bem, cientistas não são considerados intelectuais no Brasil, o que é lamentável.
À essa altura o dono da papelaria já havia sido obrigado a deixar o atendimento aos clientes da loja. Os funcionários continuavam o serviço.
- Intelectual é aquele que denuncia as contradições da sociedade!
- Caso esteja achando que o preço não é justo, não há problema, pode desistir da compra. Há uma outra papelaria a 10 minutos daqui, indo reto depois de virar à direita na próxima travessa.
- Não, deixa pra lá, estou com preguiça. Só fiz meu protesto.
- Se é assim... Só saiba que a concorrência existe justamente para isso nas economias de mercado. Cliente não está satisfeito aqui, pode procurar o mesmo produto ali ou acolá. Oferta e demanda...
- Não há ética no capitalismo!
- Está certo meu caro, o sistema econômico em si, não envolve questões éticas. A ética é um elemento puramente humano, são as pessoas que têm ética ou não.
- Conversa! Quem defende o capitalismo é indigno! Enquanto a burguesia se diverte em iates, em quadras de tênis e apartamentos de não sei quantos metros quadrados, o trabalhador passa fome. Todo burguês deveria doar um boi por mês para que o governo os redistribuísse às classes laboriosas.
- Bem, assistencialismo não elimina a pobreza. Além disso, eu por exemplo, sou um trabalhador, mas não quero que o governo me dê bois, a não ser que seja para eu cuidar deles. Acho muito estranho você fazer discurso sobre ética, dignidade, contradições, mazelas...
- Ah é, posso saber porque?!
- O que você pensa sobre o respeito que o ser humano deve ter com os animais? Como cientista e como cidadão ético, eu já aboli faz tempo o consumo de carne.
- Ahn? Está brincando, é vegetariano? Como pode não gostar de um churrasco? É muito bom! O senhor é um burguês que come folha!
- É..., como eu disse, a ética está nas pessoas, ou não... Já ouviu falar em emissão de metano na atmosfera? Sabe algo a respeito do consumo de água envolvido na pecuária? E o intenso sofrimento provocado por regimes de engorda e confinamento? E o próprio abate?
- Animais? Me preocupo com pessoas, o resto é alienação burguesa!
- Ora, ora, temos aqui um típico exemplar do pensamento especista, incapaz de enxergar qualquer relação ecossistêmica, alguém que não percebe que o ser humano faz parte do meio natural e não meramente o ocupa. Que lástima! Você pesquisa por empresas que respeitam padrões de sustentabilidade?
- Escute aqui, aonde você quer chegar com todo esse papo furado? O que tudo isso tem a ver com a exploração capitalista?
- Digamos que eu já tenha chegado até os fundamentos da sua ignorância. Eu poderia continuar e alertá-lo para o fato de que o consumidor possui o contrapoder de pressionar as empresas e assim proporcionar elementos de ajuste sobre possíveis desregramentos do sistema. Mas isso é demais para sua cabecinha de ideólogo!
- Opa, opa, você está me ofendendo!
- Ah é? Até agora foi exatamente só o que você fez! Sabe de uma coisa? A loja já passou do horário de encerrar o expediente, o dia foi muito cansativo e os funcionários precisam descansar, assim como eu.
- Quanto eu devo por essa droga?
- Nada! Não vou vender para você.
- O que?!
- É isso mesmo que escutou. Agora, ponha-se daqui para fora, vá estudar e tente obter maior ganho de consciência ao invés de propagar esse discursinho panfletário, simplista e cheio de clichês idiotas!
* PS: deve-se ressaltar, apesar de óbvio (nem todos enxergam um palmo além do nariz), que a parábola envolvida no diálogo não tem qualquer objetivo de depreciar sociólogos e estudantes e enaltecer biólogos, cientistas e microempresários; o cerne da questão é outro, evidentemente.