A América Latina é mesmo um continente fadado à desgraça. Mais de três séculos de colonização ibérica desprovida de qualquer intuito filosófico ou espiritual, um megalomaníaco personalista com complexo de Napoleão considerado até hoje "El Libertador"; no pós-independência, uma aristocracia agrária tradicionalista ocupando o poder político até o século XX e, depois dela, transmutando-se em seu lugar, uma casta política corrupta e muitas vezes autoritária, aquela que define os rumos da nossa sociedade, não sem a ajuda fundamental dos tolos em catarse que lhe outorgam poder. A pobreza econômica, como nem poderia ser diferente, é fruto desse desenvolvimento histórico peculiarmente nefasto. Quanto à intelectualidade latino-americana, boa parte de seus representantes permanece confinada à estreiteza de visão, atrasada em cerca de 50 anos, que a faz adotar em pleno século XXI as teses do marxismo vulgar.
Diante de uma tal miséria de pensamento, ninguém há de estranhar os paradoxos que abundam no cotidiano desse pobre continente. Poucos, inclusive, são capazes de escapar do véu de ignorância que cobre a reflexão devida, minuciosa e necessária a respeito dos erros da América Latina, algo a fazer destas terras uma massa inerte sempre presa ao atraso - até Hegel, e depois, Marx, já pensavam assim, para desespero velado de seus arautos que abundam por aqui. Apenas quando as pessoas se propuserem a destrinchar o que está por trás de tamanha confusão de ideias e inversão de valores que assolam a América Latina, tarefa difícil, é que poderão, talvez, se indignar contra esse panorama.
Muitos cientistas humanos, enclausurados em suas torres de marfim, enxergam a si próprios como seres iluminados por uma espécie de conhecimento obtido por vias metafísicas. Eles se apegam a mitos, ideias e paixões ideológicas cristalizados pelo tempo, quimeras supostamente imunes às mudanças históricas, mas que na verdade não podem pretender explicar contextos em constante mutação. Uma das grandes contradições inerentes a tais formas mitômanas de pensamento se dá em função delas manterem discursos que recorrem exaustivamente à história, ao mesmo tempo que deixam de prestar atenção ao novo, equivocando-se em relação ao velho. Os fenômenos da mentalidade, geralmente desprezados pelos ideólogos mais radicais, são aqueles que se perpetuam com maior resistência no tempo histórico - tem-se aqui, sendo assim, outra enorme contradição - e que, apesar de tênues, difusos e de requererem análise acurada, quando bem esquadrinhados, fornecem o quadro detalhado de uma sociedade e de sua cultura. Os exemplos que trago a seguir são pormenores aparentemente desimportantes, contudo, extremamente reveladores dos traços mentais que se refletem na cultura e na visão de mundo de uma considerável parcela dos habitantes da América Latina, evidência de como as ideias interferem vivamente na realidade, mesmo que elaboradas em completo desacordo com o real.
O jornalista e historiador Lúcio de Castro, típico representante da esquerdopatia latinoamericana, é alguém que ainda se presta a contorcionismos argumentativos para pensar na ditadura cubana e em Che Guevara como dignos de louvor e elogio. Nessa semana, ele ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo por uma série de reportagens que realizou sobre o Haiti. Lúcio afirmou no dia seguinte à premiação, que o mais importante é estar sempre denunciando o desrespeito aos direitos humanos que vigora naquele país. Não passa em nenhum momento pela cabeça do premiado, que as mazelas haitianas são, em parte, resultado dos problemas internos do Haiti. Daí nem surpreende que ele silencie sobre a absoluta desconsideração que a população haitiana mantenha com relação aos animais. Lúcio pode acreditar, juntamente com os haitianos e sua religiosidade de matriz africana, que os sacrifícios de animais não representam mal algum, pois são oferendas ao deuses. Se tais deuses existem, uma coisa é certa: eles, na verdade, detestam os sacrifícios de animais, do contrário o Haiti teria IDH maior que o da Noruega.
É claro que os direitos humanos devem ser valorizados e que deve haver denúncia quando não forem observados, caso do Haiti, mas se a pobreza lá só fosse devido a isso, resolvê-la seria mais fácil do que realmente é. Além do mais, com que propriedade um admirador de Che Guevara é capaz de abordar qualquer tema ligado a direitos humanos?
Luiz Felipe Pondé é filósofo e colunista da Folha de São Paulo. Suas opiniões políticas são muitas vezes bastante interessantes e isentas de ideologismo retrógrado. Ele já foi, por exemplo, autor de um excelente artigo acerca da Revolução Francesa, desmistificando os turbulentos e violentíssimos acontecimentos que marcaram a época Terror, momento no qual a ideia de liberdade passou tão longe quanto a França dista das Ilhas Fiji. Melhor do que qualquer livro didático que conheço. Por outro lado, Pondé é dono de argumentação execrável quando escreve a respeito de ética. Ele crê que qualquer discussão sobre o tema não passa de blá-blá-blá e que a Filosofia nunca entrou em consenso quando se trata da questão. A menos que Pondé seja da corrente que interpreta a Filosofia como sendo uma ciência, posição praticamente insustentável atualmente, ele se veria obrigado a admitir a falta de consenso em tudo aquilo que é discutido pelos filósofos, dada a natureza especulativa do ato filosófico. Além do mais, se há tema na Filosofia que estabeleça acordo muito maior do que os outros, esse tema é a ética, cuja reflexão aristotélica, datada de mais de 2 milênios, é até hoje a mais poderosa. Se filósofos como o próprio Aristóteles ou Kant puseram-se a pensar nas bases da ética, tal não ocorreu, como defende Pondé, em função da idealização de um mundo perfeito, mas devido ao exato oposto, ou seja, à imperfeição e à incompletude humanas, causas das tragédias da existência do Homem no mundo, como já ensinavam Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. É estarrecedor que um latinoamericano, brasileiro, como Pondé, ache que a ética não deva ser assunto trazido à tona, ainda mais quando se vive uma época em que a observância de deveres éticos esteja tão desprezada. O lapso pondeano serve bem para explicar porque ele entende que seres humanos não precisam se preocupar em respeitar animais, afinal, seu especismo antiético não pode reservar lugar para compaixão em relação a criaturas sobre as quais a ética deve existir em grau igual ou maior do que com humanos. Pondé parece ter receio de incorrer na pieguice do politicamente correto, equívoco recorrente da velha esquerda da qual ele não faz parte, mas peca por não perceber que a ética é um elemento de interioridade do indivíduo, não tendo nada a ver com experiência coletiva. Sr. Pondé, de fato, os animais não são iguais aos seres humanos, como pensa Peter Singer,... são bem superiores.
No âmbito do público leigo, o pensamento latinoamericano arrisca colocar as asas para fora das torres de marfim, contaminando desse modo as opiniões daqueles que são míopes histórica, filosófica e politicamente. Há alguns dias o craque argentino Lionel Messi, geralmente avesso a entrevistas, resolveu falar. Deu declarações não a respeito de futebol, mas sobre política e sociedade, defendendo Che Guevara (ele de novo, torcedor do Real Madrid!) e afirmando que o problema das drogas não é responsabilidade da pessoa que se vicia, e sim da falta de oportunidades. Era melhor se Messi tivesse permanecido calado, ele que já foi tema de artigo escrito por aqui para enaltecer sua seriedade e humildade. O jogador do Barcelona mostrou que nada sabe em matéria de história da América Latina, provavelmente derivando a lamentável defesa do sanguinário Che daquilo que ouviu de algum ex-professor seu, filhote de Abimael Guzmán. Como se não bastasse, ao mencionar a questão das drogas, revelou que não reconhece nenhum sopro de vida interior, algo bastante estranho para quem mantém perfil como o dele, eximindo completamente o indivíduo de suas escolhas e responsabilidades.
Na semana em que a abertura da Copa 2014 foi anunciada para o estádio de Itaquera, que está sendo erguido às custas de dinheiro público, algo que já seria um absurdo tremendo mesmo se não fosse destinado a uma entidade particular, como é o caso, imbecis de plantão em redes sociais e fóruns de discussão mostraram seu contentamento. Gente ufanista, ingênua e incoerente, gente que sofre com carência de serviços básicos, mas que põe paixão clubística e patriotismo tolo acima da dignidade, da decência e da cidadania. Gente que não pode reclamar de injustiça alguma, já que aplaude a esbórnia e a manipulação dos políticos, dos dirigentes e da Rede Globo. Há sujeitos tão idiotizados, néscios e estúpidos que chegam ao cúmulo de acreditar que se opor à forma como essa Copa está sendo montada representa "interesses burgueses de quem não quer ver a periferia se desenvolver". Não sei se fico com raiva de tamanha ignorância ou com dó pela facilidade com que se engana esse pessoal.
Assim como suas referências, vide o tal Che Guevara que insiste em assombrar este continente, o idiota latinoamericano apenas consegue pensar com base em oposições antagônicas, lutas de classe e maniqueísmos. Assim, as ideias divergentes significam obstáculos a uma suposta justiça social, apanágio de quem possui "sensibilidade política" e aqueles que as defendem devem ser varridos para que o curso histórico prossiga desimpedido e a justiça se faça. Essa lógica tragicômica determina quatro resultados: 1) a crença em ideias falaciosas, 2) a incapacidade de diálogo e análise da realidade isenta de paixões, 3) a inversão de valores e, o quarto e mais deplorável, o atraso latino-americano. Pobre da América Latina, econômica e espiritualmente.