E eis que Lula e Paulo Maluf estabeleceram uma aliança política para a campanha 2012 pela Prefeitura da cidade de São Paulo. E eis que muitas pessoas agora se vejam surpreendidas pelo fato. Mas por que tamanha surpresa? Porque quase ninguém entende nada a respeito do gramscianismo.
Faz já um bom tempo que a figura de Maluf é associada com aspectos negativos, tanto que o outrora político de várias vitórias eleitorais caiu no ostracismo. Daí justamente ele ter costurado essa aliança com Lula, uma tentativa de ocupar maior espaço na campanha do que permitiria o insignificante PP do qual é membro. A política brasileira não conhece escrupulosidade, nem o gramscianismo. Ainda que Maluf nunca tenha sido gramsciano, mas tão somente um retrógrado tacanha (jamais um conservador do tipo moral, o que o teria resguardado dos descaminhos políticos e da própria aliança com Lula), alguém que, lançando uso de um discurso progressista somente na aparência, conquistou ao longo do tempo um eleitorado igualmente tacanha, crente que basta abrir canteiros de obras para garantir o desenvolvimento de uma cidade, ele encontrou em Lula um instrumento sem igual no estabelecimento de diretrizes gramscianas e, assim sendo, um jeito eficientíssimo de se ajeitar no jogo de interesses que dá o tom da política no Brasil atual.
Nas décadas de 1980 e 1990, quando as ideologias partidárias eram bem mais definidas do que hoje, momento em que praticamente deixaram de ser verificáveis, Lula e Maluf estavam situados um do outro a uma distância grande no espectro político. Naquela época ambos não teriam se unido. Naquela época, Maluf ganhava eleições, Lula não. O tempo passou, Lula cumpriu dois mandatos na presidência da República, fez de Dilma sua sucessora no poder máximo da nação e, se a saúde permitir, volta para disputar o pleito presidencial de 2014, tendo chances enormes de obter o terceiro mandato.
Mesmo com todas as vitórias do passado, Maluf jamais poderia ter chegado sequer próximo da dimensão que Lula tomou. O que explica uma virada dessas? É evidente, embora nem sempre claro na mente da população, que nos últimos vinte ou trinta anos o cenário político brasileiro se transformou profundamente; o Brasil se tornou um país de massas culturamente ignorantes e, enquanto o PT encontrou a fórmula ideal para seduzí-las e tornar realizável um programa político essencialmente gramsciano e populista e, tendo chegado a isso, mantê-las sob seu jugo, Maluf permaneceu dormente e preso a um tipo de discurso completamente alheio a tudo aquilo que estivesse além das velhas classes A e B do período da ditadura e dos anos posteriores a ele.
Os partidos de direita que deram origem a figuras políticas como Maluf hoje não existem mais, a não ser em suas excrescências nanicas e tornadas fisiológicas. O grande erro da direita brasileira na esfera partidária sempre foi sua nulidade em termos filosóficos, o que condenou-a permanentemente à incapacidade de defender o tipo correto de conservadorismo. A esquerda se aproveitou desse grave lapso e passou a se vestir com o manto da santidade, dado que o conservadorismo tacanha, por não tratar de temas da modernidade, tais como ciência, tecnologia, meio ambiente, direitos das minorias e urbanização, pode ser facilmente acusado, muitas vezes corretamente, de alienado e preconceituoso. A esquerda procura vender o rótulo de "santa" até hoje, o oposto absoluto do que ela é, contudo, seu discurso gramsciano engana grande quantidade de gente. Mais ainda do que qualquer característica que manteve em seu perfil, a esquerda soube interpretar as mudanças na sociedade brasileira e deu o passo decisivo que lhe fez alcançar o poder maior no país. Do leninismo ao gramscianismo, o PT deixou de ser um partido de meros congressistas para se tornar a legenda que tornou Lula o que ele é hoje, o político mais influente do Brasil, aquele que é responsável por ditar os rumos da nação de 2003 para cá. Dos partidos de esquerda leninistas no Brasil, só restam nanicos, assim como ocorre com a direita, já na vertente gramsciana, cujo maior mentor intelectual é sem dúvida nenhuma o sr. José Dirceu, o PT se fortaleceu muito acima de todos os outros.
Conforme a sociedade brasileira foi se transformando mais acentuadamente nos últimos quinze ou vinte anos, as lideranças petistas começaram a descobrir que a linguagem direta e reta, mas ao mesmo tempo repleta de referências históricas e políticas do marxismo-leninismo, e a própria ideia de uma revolução comunista aberta e violenta não poderiam encontrar apoio das massas distantes dos grandes centros, tão diferentes de um proletário saído das descrições de Marx, quanto os gregos e troianos da epopeia homérica. Em uma sociedade de massas, contar apenas com a adesão de intelectuais uspianos e puquianos, de estudantes exalando hormônios da juventude e de uma classe de trabalhadores fabris também ela já bastante diferente do proletariado tradicional, significava renunciar à possibilidade de chegar ao poder. Era preciso seduzir o homem do sertão, o povo das periferias do Brasil afora, um estrato populacional inculto e sedento de migalhas, gente que jamais tomou conhecimento de qualquer coisa que Marx tenha escrito. O gramscianismo, apurado com altas doses de populismo latino-americano se fez o ingrediente certeiro na conquista das massas. Assistencialismo ao invés de revolução, metáforas futebolísticas no lugar de discursos pautados em questões teóricas e economicistas. O Brasil das massas é o Brasil das Cheias de Charme, é o Brasil de um certo escrete de Itaquera, ícone do establishment no quesito desportivo (qual política de dominação não requer um braço no esporte popular?!), é o Brasil do pão e circo.
Ao trazer Maquiavel para o campo do marxismo, Gramsci inverte a lógica da revolução, que não se faz mais de fora para dentro, com revolucionários armados nas ruas, mas de dentro para fora, com a classe política cooptada (da qual Maluf faz parte) e com o sistema institucional sendo destruído de maneira lenta e silenciosa, porém contínua; o fisiologismo, o apadrinhamento, a corrupção e as alianças espúrias são retrato fiel desse panorama. A imprensa livre, da qual sou defensor ferrenho, não teve peito suficiente - salvo raras exceções - para denunciar os objetivos do PT antes das eleições de 2002, quando ainda havia tempo, tampouco o PSDB pós FHC, perdido nas indefinições e limites de sua social democracia. Tanto um como o outro, em última análise, se deixaram dominar pelo respeito pusilânime ao politicamente correto e pelos resquícios de esquerdismo travestido de centralismo light de inúmeros de seus representantes. Lutar contra o PT hoje é bem mais difícil e a aliança entre Maluf e Lula, o comunicador messiânico de Gramsci, que "torna o real inteligível às classes subalternas", é só mais um capítulo dessa tragédia já bastante consolidada.
*PS: me caso no sábado, dia 23/06 e viajo em seguida; o blog ficará sem postagens novas por cerca de vinte dias ou mais; até a volta!