Em pleno aguaceiro do feriado de Corpus Christi me deparei com um grupo de jovens trajando roupas de cores vibrantes e estampas floridas, um tanto quanto sujas, saídas diretamente da década de 1970. Debaixo de muita chuva, todos eles estavam grafitando o muro de um hospital público que ficou fechado por anos e agora está sendo reaberto; horas mais tarde passei novamente pelo local e notei que a singela manifestação artística havia sido terminada. Em meio a uma série de desenhos confusos, pude ler em letras garrafais: "nem capitalismo liberal, nem ditadura do proletariado, mas sim ao socialismo libertário". Pode até ser encarado como algo sem importância, como uma brincadeira de jovens ingênuos possuídos pela atividade hormonal e pouco atentos à diferença entre utopia e realidade, mas não há como deixar de refletir a respeito do desconhecimento histórico, político, econômico, filosófico e cultural que assalta a mente de jovens que provavelmente são estudantes de Humanas e que servem de amostra para o tipo de mentalidade predominante no interior das academias brasileiras.
O sociólogo de esquerda Zygmunt Bauman declarou recentemente que estamos vivendo uma profunda revolução cultural. Não sei exatamente o que ele quis dizer com isso, pois não indicou quais são as mudanças que observa, todavia, se existe alguma alteração de paradigmas no mundo de hoje, certamente não é no âmbito do pensamento político, no qual ainda se sente o cheiro rançoso do ópio marxista, misturado, é verdade, com certas aberrações, também elas afloradas no terreno da esquerda, o que no entanto não autoriza quem quer que seja a vislumbrar que está em curso uma revolução cultural. Desse modo, não deixa de ser significativo observar que nossos jovens floridos rejeitam o marxismo tradicional e não mais acreditam na ditadura do proletariado. Todavia, justamente nesse ponto temos uma incoerência que invalida o próprio pensamento de quem descarta Marx ao mesmo tempo que clama pelo socialismo.
Como entender o tal "socialismo libertário" dos grafiteiros? Seria o socialismo de um Graco Babeuf, que Marx e Engels classificaram pejorativamente como utópico? Pouco crível, dado que o ideário de Babeuf mal é citado nas universidades atualmente. Seria então uma concepção pós-moderna anti-capitalista advinda da Escola de Frankfurt e de Foucault? Mais provável, porém, essa linha de pensamento tem mais afinidades com o anarquismo do que com o socialismo e dá ênfase à ação individual ao invés do coletivo. É de se perguntar se há possibilidade de conceber o socialismo descartando Marx, já que foi a partir da obra do pensador alemão que a tradição esquerdista concebeu todo o seu programa político desde então. Embora Marx quase nada explique acerca do funcionamento da sociedade socialista, algo que chega a ficar bem mais claro em Babeuf ou Saint Simon, é ele a referência buscada em nove a cada dez vezes que se proclama o termo "socialismo". Em Marx, a etapa socialista significa a ditadura do proletariado, portanto, quem acredita em socialismo é mais autêntico se o proclamar com base no autor do Manifesto Comunista e de O capital.
Ninguém pode conceber o que é "socialismo libertário" por ser simplesmente algo que nunca existiu (e nem poderá existir), pois se trata apenas de um non sense político que beira as raias da comédia. Socialismo pressupõe necessariamente centralização e controle, logo, está na contramão do termo "libertário", este que podemos entender corretamente como "anárquico". O abismo entre Marx e Bakunin sempre permanecerá intransponível, conclusão que pode ser facilmente obtida por meio da leitura de Edmund Wilson. Não chega a ser um autor tão confidencial, mas em vista da incoerência dos grafiteiros, supõe-se com tranquilidade que nunca o leram superficialmente, sequer.
Aqueles que defendem a liberdade como o bem supremo da existência humana, os liberais da tradição humanista, jamais precisarão substituir o termo por alguma de suas deturpações, como "libertário". Libertarianismo é o mesmo que anarquismo, como expus anteriormente, uma concepção humanitarista que remete a Rousseau e ao caos que invariavelmente derivou de todas as experiências históricas que entendem a liberdade com um dom gratuito da natureza, pensamento radicalmente oposto à tradição humanista que inicia com Aristóteles no Ocidente, ou ainda bem antes no Oriente de Buda e Confúcio, aquela para a qual não pode haver liberdade que não seja necessariamente construída no âmbito da interioridade humana, atrelada à moral e à responsabilidade. Em última análise, o anarquismo, ainda que possa ser considerado bem intencionado a princípio, só pode levar ao inverso da liberdade. Mais uma incoerência dos nossos grafiteiros.
Evidentemente, não poderia faltar na manifestação dos grafiteiros descoladinhos o viés anti-capitalista, tampouco a incompreensão quanto ao liberalismo. Foram várias as ocasiões nas quais aqui mesmo condenei com veemência o capitalismo massificado que se tem visto nos dias de hoje. Justamente pelo fato de ele não ser nada liberal. Só a surrada ideologia da velha esquerda que representa o establishment acadêmico brasileiro pode assumir que o capitalismo atual tenha algo que permita associá-lo ao liberalismo. Atualmente o capitalismo liberal vigora somente na Grã-Bretanha, na Alemanha e na Oceania. Nos países nórdicos, antes que algum socialista desavisado queira fazer diatribes, ainda que o Estado seja atuante no que realmente deve ser, sobra campo de ação para as empresas. Nenhuma nação incluída dentre estas tem hoje papel de liderança máxima na globalização. Nos grandes pólos de poder político-econômico da atualidade, inclusive nos EUA das mega-corporações, o que se tem é a aliança de burocracias empresariais com o governo e com a classe política em geral. Trata-se de uma estrutura centralizadora que, assim sendo, não faz restar espaço para o empreendedorismo e para a competição, pilares da economia liberal. Ora, o que pode restar da livre iniciativa em um jogo que favorece o conluio entre corporações e poder estabelecido?! A economia atual preponderante pode ser caracterizada como um capitalismo de Estado, forma de organização muito próxima da centralização exigida pelo socialismo e totalmente distante da concepção econômica liberal. Sempre vale lembrar que liberalismo exige liberdade tanto na política como na economia.
No fim de tudo, é impossível saber qual o ideário político dos grafiteiros floridos, exatamente em virtude da completa falta de conhecimento que exibem e que os leva a tamanhas incoerências. Socialistas desejando liberdade: "casa de ferreiro, espeto de pau". Será essa a profunda revolução cultural que diz enxergar Bauman?! A que resultados pode levar o mais exacerbado non sense em matéria de história, política, economia, filosofia e cultura? Talvez não deixe aberta nem mesmo a possibilidade de grafitar muros. Sistemas autoritários não veem com bons olhos manifestações descoladinhas carregadas de hormônios juvenis.
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