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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Escolha óbvia, equívoco na certa


Todo sábado chega em minha caixa de e-mail uma mensagem do Sinpro-SP, o Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo e, exceto quando o assunto tem a ver com alguma questão burocrática trabalhista, o conteúdo é inútil. Na mensagem do último sábado constava um link com os livros preferidos de meia dúzia de professores de diferentes disciplinas escolares e, como livros naturalmente sempre me despertam interesse, resolvi conferir, não sem esperar encontrar o óbvio... Não demorou mais do que um segundo e logo pude ver o Manifesto Comunista dentre as demais obras escolhidas; cliquei no título da obra e se iniciou um áudio com o professor - de História, é claro - que havia selecionado o Manifesto... justificando sua escolha e enaltecendo o mesmo.
De acordo com o professor, o Manifesto... é uma obra lapidar não apenas a respeito do marxismo, mas de todo um contexto histórico referente à modernidade industrial e das "contradições inerentes a ela". Ele exalta a pujança do texto, seu poder de aglutinação, a linguagem vibrante, a riqueza de conceitos e a influência posterior do Manifesto..., verificável em sua ótica, até os dias de hoje. Para terminar, oferece uma platitude inconsistente: "não é preciso ser comunista para gostar do Manifesto...". Ah, não?! Por que será que Marx não lhe atribuiu o nome de "Manifesto Ecletista" ou "Manifesto Pluralista"?!
Em primeiro lugar, apesar do óbvio que eu tinha certeza de encontrar antes mesmo de verificar o link, não consigo deixar de me surpreender com a escolha do Manifesto Comunista em meio a séculos de literatura que tantas maravilhas produziu: Ilíada, Odisseia, Eneida, A Divina Comédia, Os Lusíadas, Dom Quixote, O Leviatã, as obras de Voltaire, de Stendhal, de Flaubert, de Proust, de Dostoievski, de Tolstoi, de Kafka, dos escritores brasileiros dos séculos XIX e XX, de George Orwell, o Ulisses de James Joyce, ou até mesmo a Utopia de Thomas Morus, obra simples de um escritor que influenciou Marx, sendo porém, muito mais original e criativa do que o Manifesto.... E por falar em originalidade, decerto nosso professor teria tido um grande insight caso citasse o Popol Vuh dos maias, uma escolha de esquerda, mas que facilmente lhe pouparia de equívocos tão notórios. Diante de uma vastidão de escritos que captam a essência humana, além da própria qualidade da literatura, é realmente deplorável observar um professor elegendo algo que nem pode ser considerado um livro, mas tão somente um panfleto, como sua obra preferida. Vá lá apreciá-lo, mas colocar o Manifesto... acima de tudo sempre será um grande desperdício.
O Manifesto Comunista foi escrito em 1848, ainda no início da vida intelectual de Marx. Nessa época, a visão do próprio autor com relação ao comunismo ainda era totalmente pautada pelo que se pode designar como uma mistura de radicalismo à la Graco Babeuf com o romantismo tipicamente marxiano, cujo maior exemplo de herói mítico sempre foi o de Prometeu, o transgressor que sozinho ousou contestar a ordem do mundo para salvar a humanidade. A ideia de um idílio proletário baseado na virtude, na criatividade e no "homem completo", trabalhador braçal, pescador e ao mesmo tempo intelectual, esteve muito presente no jovem Marx e embora possa ser considerado um ideal final marxiano, (com altíssimo grau de utopia) ficou completamente ausente dos escritos da maturidade de Marx, momento no qual a racionalidade e o pragmatismo expulsaram o romantismo da juventude. Tão logo Marx - juntamente com Engels - passou a ser tomado pelo espírito cientificista da segunda metade do século XIX, reconheceu ele mesmo o caráter utópico das visões prometeicas e admitiu que o trabalho necessitava de uma autoridade reguladora.
Essa visão pragmática e racionalista do marxismo, além de ter dado a tônica de O Capital, obra da maturidade marxiana e na qual o autor mais se dedicou em sua vida, prevaleceu também no desenvolvimento ulterior do marxismo, ao menos em seus maiores centros. Orientou as políticas da Segunda Internacional de Karl Kautsky, do Lenin da NEP, que renunciou à "democracia proletária" de cunho romântico, característica do começo da Revolução Russa, e também do stalinismo, ainda que Stalin misturasse pragmatismo e racionalidade com outros ingredientes, tais quais o militarismo e o nacionalismo. O marxismo romântico teve mais influência nas chamadas periferias, como a Ásia e a América do Sul, fato que pode explicar a adoração de um professor brasileiro e das esquerdas periféricas em geral por uma obra como o Manifesto..., mas isso torna incoerente considerar o libelo da juventude marxista como "lapidar", "rico em conceitos" e "influência decisiva" na posteridade do pensamento marxista. Não pode haver a menor dúvida por parte daqueles que conhecem a obra de Marx, que o Manifesto... não tem nada de lapidar, tampouco possua riqueza conceitual ou tenha influenciado, sem ressalvas, o futuro do marxismo. Trata-se de um escrito recheado de generalizações e de hipérboles, quase sem nenhum conteúdo filosófico, desprovido de considerações econômicas; aborda principalmente a luta de classes, no entanto não traz conceitos marxianos como "burguesia", "proletariado", "capitalismo", "alienação", "ditadura do proletariado", "socialismo", "comunismo", "dialética" ou "materialismo" e foi redigido essencialmente com o objetivo de arregimentar seguidores para o marxismo. Até mesmo neste ponto não houve sucesso irrestrito, pois o anarquismo de Bakunin, que via em Marx um autoritário centralizador, e o nacionalismo muitas vezes disputaram espaço contra o marxismo; no caso deste último, creio que até hoje seu apelo é maior do que o internacionalismo proletário.
Raymond Aron, liberal e um dos maiores estudiosos do pensamento de Marx de todos os tempos, perguntaria "que marxismo?", mas jamais apontaria o Manifesto... de modo indistinto como obra lapidar de Marx. Nosso professor entende que o Manifesto... influenciou inclusive as principais correntes artísticas no século XX, o que é claramente uma generalização, tão amplo é o conceito de "arte". Quem se dispuser a decifrar uma letra do Rush verá a crítica que o trio promove às ideias de cunho autoritário, tais quais o marxismo. Não é preciso ir tão longe, basta se concentrar na Europa ou na Rússia, palco da primeira experiência marxista da história: as peças de Bertold Brecht ou os filmes de Sergei Einsestein não foram inspirados no jovem Marx, talvez o cinema de Vsevolod Pudovkin sim, porém, sua própria vitalidade enquanto tributária do marxismo é para lá de confidencial.
Outro fator que pode explicar a paixão do professor brasileiro pelo Manifesto... é sua fácil digestibilidade. Qualquer estudante de História que vai até a universidade já previamente doutrinado pelo marxismo, não em busca de entendimentos rigorosos a respeito da complexidade do espírito humano e do contínuo vaivém da dinâmica histórica, que compreende os mais diversos aspectos, mas tão somente imbuído da avidez por aplicar o molde marxista aos seus preconceitos, já tem no Manifesto... sua obra de cabeceira. É um escrito simples, direto e rasteiro, - será por isso visto como lapidar?! - de fácil digestão, bem ao contrário de O Capital, pouquíssimo lido, árido, complexo, enfastiante. Nenhum doutrinador do marxismo o faz utilizando O Capital como instrumento de doutrinação, nem alunos dispostos a "aprofundar os conhecimentos de marxologia" o querem empreendê-lo sob a monotonia do Marx pragmático e racionalista. Os hormônios da verve revolucionária exigem a emoção raivosa e hiperbólica do Manifesto... Nosso professor afirma em sua resenha que leu o Manifesto... quando tinha 15 anos e hoje calculo que deva ter entre 35 e 40, ou mais, prova de que a paixão ideológica permanece naqueles que desde cedo apreciam conteúdos autoritários.
O pensamento do próprio Marx e o marxismo, isto é, tudo aquilo que deriva do filósofo alemão, caracterizam-se de modo essencial e inalterado por algo que os fazem execráveis aos olhos de todo liberal: o autoritarismo. Isto posto, a leitura de autores do porte de Raymond Aron, Leszek Kolakowski ou David Priestland nos mostra que o marxismo possui várias vertentes, muitas delas notadamente marcadas por elementos divergentes entre si. Desta maneira, elencar o Manifesto Comunista, um simples panfleto da fase jovial e romântica de Marx, depositando nele toda substância de uma visão de mundo que não ficou totalmente acabada por seu próprio autor e que se desenvolveu tendo que lidar com diferenças intrínsecas, além do desconhecimento sobre Marx, é revelador da ideologização e do doutrinarismo característico de tantos educadores brasileiros. Só se deve lamentar.

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