Já usei este espaço anteriormente para escrever sobre a imbecil obsessão de tantos brasileiros, levados de roldão por certas ideias supostamente intelectualizadas, de definir uma identidade nacional. Volto hoje ao assunto, abordando-o de uma forma diferente.
Em seus vários capítulos, a busca patológica e anti-histórica pela identidade nacional teve no Movimento de 1922 sua pedra fundamental, seu ídolo das origens no qual, sempre que manifestada, faz retornar elementos erigidos por aquele grupo de artistas. A partir de então, quase como em um passe de mágica, praticamente todos eles foram imbuídos de uma aura de santidade e adquiriram respeito que não pode ser contestado sob pena de imputação de crime de lesa-pátria ao contestador.
Na esteira do Movimento de 1922, muito bem aproveitado por Getúlio Vargas na conformação da tal identidade brasileira, os traços da chamada brasilidade estabeleceram bases que até hoje se observam largamente recorrentes. Metafórica e sinestesicamente, a brasilidade possui perfumes tropicais, é alegre, alvissareira, quente, musical e radiante; suas cores pulsam vibrantemente e enunciam categoricamente o espírito feliz do povo brasileiro. Mesmo em um Cândido Portinari, onde os temas políticos são bastante nítidos, sempre resta a força dos tipos nacionais como característica redentora. Desconfio que poucas coisas atingem maior grau de pieguice, sentimentalismo barato e efemérides tão enganosas quanto essa brasilidade que emana desde 1922. Nem é preciso ressaltar que à margem do pattern da identidade nacional forjada, sobrevive um certo número de pessoas nada preocupadas com questões identitárias, mas obrigadas a conviver em muitas situações com o falso patriotismo, consequência lamentável desse quadro patológico. Da imposição da brasilidade adveio o ridículo da obrigatoriedade de se valorizar tudo que é nacional. Ao invés do enaltecimento do universal, do sublime, do qualitativo, o nacional se impõe sem ser necessariamente merecedor, pelo contrário. A lógica se inverteu: não que os brasileiros devam produzir cultura de qualidade, mas se é brasileiro, basta para ter qualidade. Cultura, de acordo com essa concepção, passa a ser uma questão telúrica.
Ainda assim, diante de uma brasilidade tão tentacular, não é impossível encontrar manifestações de alta cultura fora de seu círculo. Não, evidentemente, que seja difícil encontrá-la justamente aí, pois é só onde ela tem existido, mas seu espaço fica limitado pela propagação de epígonos: a cultura de massas e a incultura, que lhe é atrelada. Desse modo, é preciso esforço, mas a qualidade hermética daquilo que é confidencial convida as criaturas pensantes ao desvendamento compensador. No campo da pintura, o gaúcho Iberê Camargo (1914-1994) é um representante ímpar de tudo que foge à brasilidade. Iberê, por assim dizer, é disparado o melhor pintor brasileiro de todos os tempos, propiciador de uma obra em que a qualidade é reconhecível por ela própria, sem ter em momento algum que recorrer aos clichês da brasilidade. De modo completamente oposto aos nomes mais cultuados da pintura brasileira, todos eles presos aos elementos característicos da "identidade nacional", a obra de Iberê jamais faz concessões ao observador, como tão bem colocado por Daniel Piza. A pintura do artista gaúcho é densa, sombria, soturna, insondável e misteriosa. Predominam as tonalidades escuras e os temas não são nada afeitos ao clima alegre e redentor. A atmosfera é de inteira sobriedade e introspecção, nada oferecendo ao observador sem que uma reflexão profunda, detida e dolorosa tenha que ser encarada. Entender Iberê Camargo é desafiá-lo em um diálogo socrático que o artista propõe; tudo está ali sem poder ser categorizado em termos apriorísticos, apenas podendo ser decifrado à custa de um exame devastador da consciência e da interioridade.
Uma vez que a pintura de Iberê se caracteriza por elementos diametralmente contrários à brasilidade, torna-se evidente que seu nome e sua obra sejam reconhecidos somente no seio de uma perspectiva de caráter muito mais seleto do que acontece com as manifestações que se coadunam docilmente com o lugar comum da identidade nacional. Em uma cultura de massas marcada pelo progressivo emburrecimento dos espíritos, isso se acentua fortemente. Por um lado, é extremamente difícil deixar de pensar que a confidencialidade de suas telas constitui uma garantia da alta cultura que as mesmas têm como legado artístico, o que de certa maneira é positivo, pois faz com que permaneçam protegidas da massificação. Por outro, todavia, revela que o Brasil é um país cuja mentalidade de seu povo permanece impermeável à cultura de qualidade, já que esta sempre depende de uma atividade intelectual verdadeira, honesta, diligente e paciente, algo raríssimo por aqui.
A valorização do nacional a partir de motivações puramente telúricas é digna de repúdio, uma prática cretina, afeita à necessidade de domesticação sem a qual nenhum autoritarismo deita raízes - não foi por acaso que a construção da brasilidade deu seu passo mais decisivo nas décadas de 1920 e 1930, nesta então já sob a ditadura de Vargas. Na medida em que a pintura de Iberê Camargo é um exemplo incomum de manifestação artística brasileira da mais alta qualidade, ela deve sempre merecer os mais honoráveis louvores.