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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Iberê Camargo: a antítese da brasilidade


Já usei este espaço anteriormente para escrever sobre a imbecil obsessão de tantos brasileiros, levados de roldão por certas ideias supostamente intelectualizadas, de definir uma identidade nacional. Volto hoje ao assunto, abordando-o de uma forma diferente.
Em seus vários capítulos, a busca patológica e anti-histórica pela identidade nacional teve no Movimento de 1922 sua pedra fundamental, seu ídolo das origens no qual, sempre que manifestada, faz retornar elementos erigidos por aquele grupo de artistas. A partir de então, quase como em um passe de mágica, praticamente todos eles foram imbuídos de uma aura de santidade e adquiriram respeito que não pode ser contestado sob pena de imputação de crime de lesa-pátria ao contestador.
Na esteira do Movimento de 1922, muito bem aproveitado por Getúlio Vargas na conformação da tal identidade brasileira, os traços da chamada brasilidade estabeleceram bases que até hoje se observam largamente recorrentes. Metafórica e sinestesicamente, a brasilidade possui perfumes tropicais, é alegre, alvissareira, quente, musical e radiante; suas cores pulsam vibrantemente e enunciam categoricamente o espírito feliz do povo brasileiro. Mesmo em um Cândido Portinari, onde os temas políticos são bastante nítidos, sempre resta a força dos tipos nacionais como característica redentora. Desconfio que poucas coisas atingem maior grau de pieguice, sentimentalismo barato e efemérides tão enganosas quanto essa brasilidade que emana desde 1922. Nem é preciso ressaltar que à margem do pattern da identidade nacional forjada, sobrevive um certo número de pessoas nada preocupadas com questões identitárias, mas obrigadas a conviver em muitas situações com o falso patriotismo, consequência lamentável desse quadro patológico. Da imposição da brasilidade adveio o ridículo da obrigatoriedade de se valorizar tudo que é nacional. Ao invés do enaltecimento do universal, do sublime, do qualitativo, o nacional se impõe sem ser necessariamente merecedor, pelo contrário. A lógica se inverteu: não que os brasileiros devam produzir cultura de qualidade, mas se é brasileiro, basta para ter qualidade. Cultura, de acordo com essa concepção, passa a ser uma questão telúrica.


Ainda assim, diante de uma brasilidade tão tentacular, não é impossível encontrar manifestações de alta cultura fora de seu círculo. Não, evidentemente, que seja difícil encontrá-la justamente aí, pois é só onde ela tem existido, mas seu espaço fica limitado pela propagação de epígonos: a cultura de massas e a incultura, que lhe é atrelada. Desse modo, é preciso esforço, mas a qualidade hermética daquilo que é confidencial convida as criaturas pensantes ao desvendamento compensador. No campo da pintura, o gaúcho Iberê Camargo (1914-1994) é um representante ímpar de tudo que foge à brasilidade. Iberê, por assim dizer, é disparado o melhor pintor brasileiro de todos os tempos, propiciador de uma obra em que a qualidade é reconhecível por ela própria, sem ter em momento algum que recorrer aos clichês da brasilidade. De modo completamente oposto aos nomes mais cultuados da pintura brasileira, todos eles presos aos elementos característicos da "identidade nacional", a obra de Iberê jamais faz concessões ao observador, como tão bem colocado por Daniel Piza. A pintura do artista gaúcho é densa, sombria, soturna, insondável e misteriosa. Predominam as tonalidades escuras e os temas não são nada afeitos ao clima alegre e redentor. A atmosfera é de inteira sobriedade e introspecção, nada oferecendo ao observador sem que uma reflexão profunda, detida e dolorosa tenha que ser encarada. Entender Iberê Camargo é desafiá-lo em um diálogo socrático que o artista propõe; tudo está ali sem poder ser categorizado em termos apriorísticos, apenas podendo ser decifrado à custa de um exame devastador da consciência e da interioridade.


Uma vez que a pintura de Iberê se caracteriza por elementos diametralmente contrários à brasilidade, torna-se evidente que seu nome e sua obra sejam reconhecidos somente no seio de uma perspectiva de caráter muito mais seleto do que acontece com as manifestações que se coadunam docilmente com o lugar comum da identidade nacional. Em uma cultura de massas marcada pelo progressivo emburrecimento dos espíritos, isso se acentua fortemente. Por um lado, é extremamente difícil deixar de pensar que a confidencialidade de suas telas constitui uma garantia da alta cultura que as mesmas têm como legado artístico, o que de certa maneira é positivo, pois faz com que permaneçam protegidas da massificação. Por outro, todavia, revela que o Brasil é um país cuja mentalidade de seu povo permanece impermeável à cultura de qualidade, já que esta sempre depende de uma atividade intelectual verdadeira, honesta, diligente e paciente, algo raríssimo por aqui.
A valorização do nacional a partir de motivações puramente telúricas é digna de repúdio, uma prática cretina, afeita à necessidade de domesticação sem a qual nenhum autoritarismo deita raízes - não foi por acaso que a construção da brasilidade deu seu passo mais decisivo nas décadas de 1920 e 1930, nesta então já sob a ditadura de Vargas. Na medida em que a pintura de Iberê Camargo é um exemplo incomum de manifestação artística brasileira da mais alta qualidade, ela deve sempre merecer os mais honoráveis louvores.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A figura dominante e as ideias no claustro - um conto

"A ignorância produz atrevimento, a reflexão, vagar". Péricles

"Nada é mais presunçoso do que a ignorância ligada à convicção de que se possui ciência". - Erasmo de Rotterdam

Augusto chegou e tão logo sentou-se para aguardar o início do curso. Estava ali sem grandes expectativas, pois já sabia mais ou menos com o que se defrontaria, mas no fundo, nutria um pouco de curiosidade com relação aos detalhes discursivos, conceitos e ideias que seriam expostos por aquela cuja posição ocupada era francamente proeminente.
Naquele lugar, caso o sujeito estivesse imbuído do desejo de obter conhecimento com vistas ao enriquecimento cultural e, mais sublimemente, como condição fundamental na construção da personalidade e fortalecimento do domínio moral, o esforço necessário se mostrava tamanho, que facilmente fazia soçobrar os menos persistentes. Somente nas brechas, no silêncio confidencial e nos momentos crepusculares é que se conseguia escapar dos lugares comuns impostos pela brutalidade do patrulhamento. O maior dos louvores é merecido a todas (e poucas) mentes isentas e verdadeiramente compromissadas com o saber que ousaram estabelecer pontos fora da curva. Outros, a maioria, preferiam aderir por comodidade, fraqueza de espírito, ignorância, ou uma combinação de tais fatores, ao catecismo que sempre iam buscar no século XIX, reeditando-o sem critério e escrúpulos, ao bel-prazer da vã ideologia.
A exposição de Veridiana seguiu dentro do que Augusto esperava. Era o mesmo discurso que ele já havia escutado um bom número de vezes desde que frequentava aquele lugar. Não mudava a característica imprecisa, sendo que o receituário era transmitido em bloco, sem quaisquer distinções em termos de fase ou de modo a enfrentar os problemas filosóficos, históricos, sociológicos ou econômicos da coisa toda. Uma questão de incapacidade? Sem dúvida, haja vista que a conformação do tipo de pensamento que ali se disseminava não ia além de uma deformidade daquilo que já havia surgido em suas próprias origens, como uma enorme deformação. Entretanto, era algo além de incapacidade, uma deformação não apenas epistemológica, mas sobretudo moral. Qual nível de degradação se atinge no apego irracional a dogmas tão equivocados? Questão difícil! A um pano de fundo que, ao mesmo tempo que se mostrava encerrado em seu fatalismo, nunca deixava de fazer apelos à necessidade da práxis, maneira ardil na tentativa de descartar todos aqueles que não compunham o perfil do "novo homem", somava-se uma série de erros grotescos, de natureza conceitual, ou até mesmo puramente cronológica, factual, quantitativa. Augusto teve uma vez mais a nítida impressão de que o programa era erigido com clara intenção prescritiva, o que não era, de modo algum, uma novidade. Ele se remoía em suas entranhas mentais buscando uma explicação capaz de indicar o motivo do fascínio exercido pela figura dominante, contudo, como não poderia deixar de ser, retornava aos mestres: Ortega y Gasset, Albert Camus, Hannah Arendt ou Isaiah Berlin já haviam oferecido contribuições profundas acerca do tema. Ao contrário do que versava o próprio catecismo transmitido por Veridiana e seus pares, cada vez mais percebia a força das ideias! Para o bem, mas infelizmente, mais para o mal, pois o pensamento dominante é pródigo em verbalizar e adotar a sumária estratégia do descarte de tudo o que não tem explicação no seio de sua rigidez paradigmática. Vem daí sua força sedutora, porque ele simplifica a complexidade do real, cria campos opostos, angeliza e demoniza, recorrendo a um suposto curso histórico como forma de ameaçar quem resiste à sedução. O grande Eugen Von Böhm-Bawerk não pensou em outra coisa quando declarou que "as massas não buscam a reflexão crítica: simplesmente, seguem suas próprias emoções; acreditam na teoria (...) porque a teoria lhes agrada".
Houve uma ocasião em que Augusto se utilizou de Tocqueville e de François Furet para argumentar sobre a Revolução Francesa. Pensadores contrários à corrente dominante. Veridiana iria replicar? Não houve réplica alguma. Polidez por parte dela, ou falta de interesse em promover a discussão? Augusto tentou pensar diferentemente, mas o desinteresse era uma evidência. Veridiana dominava burocracias, gerenciava e atuava no que, cinicamente, designava-se por "produção do conhecimento". A tal ponto sua figura estava cristalizada como dominante, que nada precisava desenvolver como contribuição. Raízes se fincavam desde muito tempo e o domínio era não só pragmático como mental, o pior e mais tenebroso de todos os domínios. Uma grande horda de coadjutores cativos estava sempre pronta a defender a figura dominante de Veridiana. Eles se encarregavam de manter vivas as ideias da doutrinadora, mais ainda do que as ideias dela, as ideias daquele catecismo mundano continuamente reproduzido desde que surgiu e se apossou das mentes da multidão. Todos têm alguma noção do legado concreto da doutrina, mas o legado epistemológico é o mais sombrio, aquele que justifica as consequências passadas e presentes em nome de um futuro falso e inatingível. Figura de força, ideias dominantes. Ideias no claustro. Até quando?

terça-feira, 16 de julho de 2013

Cidades históricas de Minas Gerais: breve memorando turístico

Igreja de São Francisco de Assis, em São João Del Rei

Juntamente com minha esposa, estive passando alguns dias nas cidades históricas de Minas Gerais. Fomos para São João Del Rei, cidade na qual ficamos hospedados, Tiradentes, Congonhas e Ouro Preto, além de termos passado por Bichinho, Coronel Xavier Chaves, Prados, Resende Costa e Santa Cruz de Minas, povoados menores da região. Por questões logísticas, não foi possível visitar Mariana.
É sempre bom conhecer lugares diferentes e, de uma maneira geral, pudemos descansar e ter contato com a arte, a cultura, a história e a natureza que permeiam o chamado Circuito do Ouro. Por outro lado, é evidente que em se tratando de Brasil, acaba-se também enfrentando certos problemas que prejudicam o turismo no país, prova de que falta uma ampla quantidade de investimentos essenciais para tornar a atividade turística sólida e geradora de divisas nestas terras. Nenhum evento sazonal ou esporádico pode suprir tal carência, pois é algo que está relacionado com planejamento, manutenção e fiscalização, elementos que só são possíveis e eficazes caso se façam permanentemente e em diálogo com a sociedade e a iniciativa privada. O enorme potencial turístico brasileiro é inversamente proporcional às precárias políticas que o gerenciam. Mais um ponto no qual há muito tempo os governos no Brasil deixam de atuar devidamente.
Em termos específicos, a cidade de São João Del Rei, dotada de grande riqueza cultural, faz saltar aos olhos a deficiência do turismo brasileiro. A localidade conta com cinco igrejas principais que se dispõem no espaço de modo a formar o desenho de uma cruz: São Francisco de Assis, a que apresenta maior tesouro artístico, Nossa Senhora das Mercês, simples, porém muito charmosa, Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga da cidade e quase sempre fechada à visitação, Nossa Senhora do Carmo, marco do Rococó mineiro e, finalmente, a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, de exterior carrancudo e sem graça, mas cheia de ouro na parte interna. Além das igrejas, há museus, memoriais, solares e outras construções históricas que poderiam atrair bem mais turistas do que a cidade hoje tem como capacidade e vocação. O número de pousadas não chega a ser ínfimo, mas em termos gastronômicos, comer uma pizza de mussarela minimamente aceitável, pode exigir um esforço hercúleo, a não ser que o turista se satisfaça com massa de pão e salsa desidratada no lugar de orégano ou manjericão fresco, artigo quase de luxo. Não demora muito para notar que a mão de obra na cidade é escassa, fato que faz o comércio sofrer, especialmente o comércio de artigos típicos, que tem mais dificuldade de contratar, exatamente porque falta estrutura turística. Mesmo sendo uma cidade relativamente pequena, São João Del Rei possui trânsito um tanto quanto bagunçado e a sinalização é ruim, quando não inexistente, sobretudo nas saídas para estradas, onde se torna ainda mais necessária (em termos gerais, a precariedade se faz presente em vários trechos rodoviários). O problema maior, no entanto, é a ocupação desenfreada nos morros que cercam a cidade, tornando-a desagradável no que tange ao aspecto urbanístico. Não há uma lei que proíba ou sequer restrinja a construção fora dos padrões históricos e arquitetônicos, tampouco uma delimitação quanto às áreas nas quais construir é permitido. Nesse caso, o argumento esquerdista e politicamente correto aponta para a especulação imobiliária como responsável, sem se dar conta da completa ausência de planejamento familiar no Brasil, grave lacuna que deveria ter sido preenchida há pelo menos quarenta anos. Pudemos reparar inúmeras mães portando crianças de colo, com mais um ou dois filhos pequenos a pé, indo na direção de algum lugar. Mães muitas vezes bastante jovens, ainda longevas em termos de período fértil. Vale ressaltar que dentre as cidades que visitamos, somente Tiradentes escapa do crescimento urbano desenfreado. O centro histórico é muito mais preservado arquitetonicamente, de modo que o casario colonial típico se harmoniza com a Matriz de Santo Antonio, também recheada de ouro, no alto da cidade. A gastronomia de Tiradentes igualmente se mostra mais sofisticada e variada do que na vizinha São João Del Rei, inclusive para quem não quer chegar nem perto de carne. Se irá se manter assim, não se sabe.

Tiradentes e a Matriz de Santo Antonio ao fundo

Em Congonhas, o conjunto artístico da Basílica de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos é sem dúvida o ponto alto da viagem às cidades históricas mineiras. Apesar de alguns argumentos bastante convincentes que retiram de Aleijadinho a aura de mestre, as cenas do calvário de Cristo, talhadas em cedro, e principalmente as estátuas dos doze profetas em pedra sabão, conferem ao local uma característica pitoresca, mais pela atmosfera do que pela arte de Antonio Francisco Lisboa, indubitavelmente grosseira em certos detalhes. De um lado uma Congonhas desfigurada pelo mesmo problema que São João Del Rei, do outro, no alto da colina, com as estátuas quase flutuando no céu junto à Basílica, a impressão de que o santuário religioso se isola do resto do mundo, mantendo resguardados a paz e o silêncio, é nítida e quase palpável. O senão fica por conta dos anos e anos de vandalismo, cujas marcas inscritas perduram no macio da pedra sabão. Felizmente, hoje em dia, a vigilância é bem mais atenta.

 
A Basílica de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas

Em Ouro Preto a visita teve que transcorrer rápida, sendo que o tempo foi suficiente somente para que visitássemos as atrações mais icônicas da cidade: a Igreja de São Francisco de Assis, cuja fachada é considerada a mais grandiosa do barroco mineiro e o teto, pintado por mestre Ataíde, o segundo mais bonito do mundo, ficando atrás da Capela Sistina, a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, cuja quantidade de ouro no interior é uma das maiores no Brasil e a Nossa Senhora do Carmo, que cativa o turista devido aos azulejos portugueses junto à capela-mor, além do adro panorâmico. Se a riqueza artística, cultural e histórica de Ouro Preto faz com que a cidade lidere em importância o Circuito do Ouro, conferindo-lhe o justo título de patrimônio histórico da humanidade, a desatenção urbanística das últimas décadas, também com justiça, poderá subtrair a conquista.

O rebuscamento barroco na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto

As cidades menores e os povoados que citei no início não nos chamaram muito a atenção. Em teoria, o artesanato é o forte em todos esses lugares, mas falta criatividade para variar o repertório das peças, demasiadamente similares e que podem ser encontradas aos borbotões nas lojas de Tiradentes sem que o preço varie tanto. Fica algum destaque para Resende Costa, que apresenta leque mais amplo de peças em tear.
A viagem às cidades históricas de Minas Gerais, como qualquer outro destino brasileiro, certamente proporciona prazer ao turista, tanto culturalmente, quanto em relação à beleza natural, que se pode desfrutar em uma caminhada por trechos preservados de vegetação nativa, observando fauna, flora e respirando ar puro. Em sentido oposto, é preciso paciência para driblar os problemas típicos de um país que não explora corretamente a atividade turística. Pelo bem e pelo mal, é a cara do Brasil.