A História em migalhas é o título de um importante livro do historiador francês François Dosse. Ainda que o autor tenha certa dose de razão, haja vista que algumas pesquisas historiográficas empreendidas no último quartel do século XX pecam por seu caráter excessivamente idiossincrático e pela ausência de relações minimamente importantes com quadros sociais mais amplos, sempre desconfiei bastante das explicações baseadas nas ditas "causas gerais" e das teorias holísticas, sobretudo o marxismo, embutidas na reflexão de Dosse. Como nos atesta a boa micro-história, detalhes aparentemente secundários, de uma hora para outra podem passar a ocupar o centro do palco nas tramas do tempo, além do que, permitem observar as situações que se interpõem perante os sujeitos a partir de perspectivas até então negligenciadas, quase sempre de modo profícuo. O estudo dos pormenores se apresenta, então, como bom instrumento teórico para a análise do passado, mas também de conjunturas recentes. Tanto no que concerne às causas gerais como aos detalhes aparentemente ínfimos, o que se segue tem a ver com esse parágrafo inicial.
Migalhas, no sentido de "coisa pouca", é o que hoje mantém a sustentação de um certo partido no poder... . O Partido dos Trabalhadores surgiu no cenário da política brasileira portando ideias e discursos que, se em 1979 já representavam um grande equívoco, mesmo assim caíram bem (como grande embuste) no contexto de um país em vias de egresso da ditadura militar e já sem que a maior parte da população nutrisse apreço pela alta cultura, resultado da ocupação de espaço esquerdista em todos os níveis educacionais. As diretrizes políticas e a estrutura discursiva, apesar de se assentarem em falsas premissas, encontraram força no apelo à "justiça social", à ética inabalável e à administração "progressista". O que se chama de "canto de sereia" na sociologia política é um desses pormenores reveladores que conferiram elã ao PT e a tantos outros partidos de esquerda, hoje satélites daquele. Esse arcabouço foi mantido praticamente intacto até não muito tempo, embora com mudanças sutis usadas estrategicamente em momentos eleitorais, e o escamoteio deliberado dos detalhes reveladores de sua real natureza deram quatro mandatos presidenciais seguidos aos petistas. No plano cultural em geral, na grande imprensa e no sistema educacional, bem antes mesmo de tomar o poder federal, contando com a desatenção de uma população manipulada e incapaz de se libertar do politicamente correto e do zeitgeist anticapitalista, a esquerda deitou raízes no Brasil.
Todo esse sistema de poder erguido cuidadosamente em âmbito cultural, político e social obedeceu a uma lógica totalizante e coerente do ponto de vista de sua estrutura interna. Funcionou bem, como todos sabem, mas agora se encontra esgotado. As promessas idílicas, típicas de qualquer discurso esquerdista, nada mais do que jogos de palavras cujo objetivo final é a própria tomada de poder em detrimento das liberdades individuais, se revelaram tremenda falácia, como não poderia deixar de ser. Somem-se à implosão do paradigma central os desastres adjacentes de um governo centralizador e comunista: distribuição de favores no interior da máquina pública e seu aparelhamento, corrupção sistêmica elevada a modus operandi, gastos crescentes e incessantes, baixa produtividade, economia em declínio franco e constante, inflação, recessão, falência completa da educação e dos serviços de saúde, e o quadro se completa. Mas por que, mesmo dando impressão clara de que tudo é apenas questão de tempo, o PT ainda se permanece no poder? Quem pode pensar em democracia diante de tal panorama? Voltemos às migalhas...
A cultura, que traz consigo um evidente componente moral, é algo cuja mudança se insere na longa duração e a alteração completa de nossa organização política só viria depois daquela. Pensar que o país dependa de temporalidade lenta para que mudanças aconteçam é desanimador, mas é possível que estejamos, ao menos, no fim de um ciclo conjuntural de média duração, porém, isso dependerá, em boa medida, das escolhas que fizermos... A esquerda que hoje está no poder se sustenta de modo tênue, presa em excrescências politicamente corretas, bandeiras de minorias sedentas dos favores estatais. Um partido cujas diretrizes se dissolveram por completo, até por serem falsas, sobrevive distribuindo migalhas para quem levanta ideias fragmentárias, também elas, no fim das contas, migalhas... Universitários e acadêmicos ainda crentes no ranço marxista, "movimentos sociais" e sindicatos bancados pelo dinheiro do contribuinte, gayzistas, feministas e afins. Esses grupelhos, evidentemente, não carregam projeto algum de sociedade, até porque sua ordenação é fragmentária, segregacionista e sua pretensão futura é o fim da própria sociedade, como procurei discutir, de certa forma, no artigo anterior. A análise da história nos revela que esses movimentos, invariavelmente, tiveram o totalitarismo como resultado, fazendo com que aquilo mesmo que sempre defenderam se tornasse algo impraticável em regimes que não podem existir sem o controle máximo dos indivíduos e a intensa centralização política nas mãos do Estado. O terror, a vigilância, as arbitrariedades, as perseguições e execuções são características inerentes de todos os sistemas criadores de nichos que subdividem o corpo social, colocando uns contra os outros de modo extremamente severo e aflorando ódios que culminam em guerra civil e na posterior consolidação, por tempo indeterminado, de um líder que se autoproclama o justiceiro de todos os males sobre a Terra. Isso lhe soa familiar?
Observar esse microcosmo que faz a esquerda se sustentar tem viés duplo: positivamente, nos leva a crer que, sem uma política coesa em termos de sociedade, qualquer organização partidária está fadada ao fracasso, algo que já tem sido notado claramente, já que o apoio restrito de grupos atomizados foi só o que restou ao PT, com a imensa maioria do corpo social estando na oposição; por outro lado, o problema pode ser muito maior em função da fraqueza da sociedade diante de um Estado semi-totalitário e da situação das instituições, corrompidas, aparelhadas e envoltas nos joguetes de poder, reflexo do próprio sistema instaurado pelo petismo. Essa ainda é sua característica mais forte.
Ao cidadão de bem, restam alguns meios de ação e, se levarmos em conta a máxima de Edmund Burke, é com extrema urgência que os bons necessitam agir para que o mal não triunfe. Fica mais difícil conforme o tempo passa, pois os inimigos da sociedade tornam seu poder mais independente e autocentrado à medida em que vão exterminando as forças livres. É hora de pressão intensa contra o (des)governo petista! Vamos ficar só assistindo passivamente?