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sexta-feira, 11 de maio de 2018

Gregor Samsa de Perdizes


Primeiro dia de aula e os calouros iam se conhecendo enquanto levavam trote dos veteranos, um trote até certo ponto leve e descontraído. José Leandro Nagato se mostrava um rapaz tímido, recatado, chegava até mesmo a ser meio medroso e a vontade de se integrar ao restante daqueles que formavam sua turma de calouros esbarrava fortemente na insegurança, francamente visível no olhar. Talvez eu tenha sido o primeiro a puxar papo com ele sobre o longo período que a partir daquele momento abria as portas do desconhecido sobre nós e logo pude notar que o garoto vindo do interior era, como se diz, gente boa, o tipo do sujeito que não faz inimigos. Fala mansa, grande dose de ingenuidade e uma expectativa que, embora contida, possuía vigoroso potencial germinativo, algo que naquele início era o que de melhor um novato prestes a iniciar seu curso superior poderia ter. Nagato reunia qualidades que faziam enxergar nele uma margem fecunda de crescimento.
Os primeiros meses foram passando e Nagato, na faixa dos dezoito ou dezenove anos de idade, era ainda cru como uma pedra rombuda, mas seu interesse e o empenho que empreendia a cada desafio davam gosto de ver. Ele carregava uma miríade de dificuldades que estavam ali exatamente para serem superadas construtivamente e, ao contrário da maioria, não sucumbia a tais exercícios. Como era de esperar, foi sendo lapidado e seu repertório teórico e prático ganhava implementos importantes à medida em que cumpria etapas. Quem iria duvidar daquele garoto?
Trata-se de um clichê afirmar que a vida é feita de escolhas, mas clichês são verdades simples já examinadas, por isso muitas vezes caem em esquecimento, o que não é bom indício. Conforme um indivíduo aumenta sua gama de conhecimentos e aprimora seu intelecto, aumentam igualmente suas responsabilidades em função de que o olhar sobre a realidade, sempre encantadora, ao mesmo tempo em que exige cuidado para não haver deslumbramentos, invariavelmente inebriantes, expande ângulos e horizontes. O fator de complicação se dá porque diante desse novo espectro, a quantidade de escolhas a serem feitas cresce exponencialmente é e necessário sabedoria para realizá-las, do contrário, um caminho tomado de maneira equívoca e inadvertida, em várias situações, não permite retorno. Cabe ter em mente a diferença fundamental entre conhecimento e sabedoria: o primeiro é específico e obtido por meio da reflexão a partir das informações recebidas, já a segunda, assume um caráter geral e não tem finalidade pragmática imediata, pois seu uso se dá no interior do sujeito, sempre visando coisas maiores e perenes. A sabedoria não vem de algum lugar, ela se desenvolve - ou não - como uma espécie de Providência que nos é fornecida em termos de potência pelo Deus particular que habita o âmago de cada um de nós. Sempre acreditei que não adianta pedir nada a Deus além da capacidade de discernimento entre o certo e o errado, sendo todo o processo que começa em virtude disso, de responsabilidade única e exclusiva do indivíduo. Se o senso de responsabilidade fenece, a pessoa se vê em grande perigo e apenas o potencial de sabedoria atua como remédio repositor contra esse turvamento, sendo que o maior e o melhor esforço que o ser humano pode prestar a si mesmo é a manutenção da responsabilidade. Não há sabedoria sem autodomínio moral.
Nagato chegou em um ponto no qual sua bagagem de conhecimentos específicos se assemelhava a uma cristaleira repleta de objetos de boa qualidade a serem guardados e preservados, daí em diante estando pronta a se aprimorar quase que naturalmente. Nesse mesmo ponto, nevrálgico para qualquer pessoa, momento de inflexão que poderia proporcionar ganhos de caráter inestimável e vitalício, Nagato fraquejou e fez as escolhas erradas. Talvez por imaturidade, talvez por embevecimento, ou um misto desses dois vampiros da alma, faltou-lhe a interioridade cuidadora, faltou-lhe a precaução crucial que paulatinamente o conduziu à trágica metamorfose e à aniquilação moral. Imerso em um turbilhão de vaidade, seduzido pelos aplausos de grupos ligados ao establishment, ele deixou de estar atento ao senso de responsabilidade que permeia as escolhas corretas, ficou com o flanco aberto ao assalto dos bajuladores, dos doutrinadores e de toda a sorte de más influências que o ambiente que frequentávamos era pródigo em fazer espreitar por detrás de cada brecha, tornando-o incapaz de reconhecer o mal disfarçado sob a pele de cordeiro.
Da segunda metade do curso em diante, Nagato passou a usar seu conhecimento sem qualquer sabedoria, sem responsabilidade, deixando não apenas de guardá-lo e preservá-lo, mas esgotando a chance de aprimorá-lo, já que então não havia mais um norte moral a ser buscado, não havia mais finalidades nobres a serem almejadas. Todo aquele alicerce construído com esmero agora apodrecia rapidamente, atacado pela peste do relativismo, da inversão de valores, do autoritarismo e da vã autoindulgência. Com isso, ele se tornou pior a cada dia que passava, tanto como postulante ao bacharelado como em termos pessoais, o que era ainda mais abominável. Um dantesco espetáculo de degradação tomou conta das entranhas do outrora promissor Nagato, típico exemplo de desperdício.
O Gregor Samsa kafkiano foi vítima de um arranjo em relação ao qual ele não engendrou de forma direta, tendo pecado pela falta de percepção apriorística. Nagato, o Gregor Samsa de Perdizes, perdeu de vista o senso de responsabilidade e, consequentemente, o potencial de sabedoria, assim ocasionando diretamente sua própria metamorfose destruidora. O personagem de Kafka nos impele a um sentimento de pena, tal como Nagato, todavia, o rapaz que tinha tudo para brilhar mas se deixou levar por trilhas nefastas, acaba não retendo nem mesmo o fio de dignidade ensejado pela pena e, embora sempre lamentemos por um potencial ser jogado fora tão estupidamente, no fim das contas, pelo fato de ter sido responsável por sua degradação, talvez ele não mereça nada mais do que o limbo.

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