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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Espectro político: uma ideia confusa e cristalizada *


O espectro político tal qual é conhecido atualmente, isto é, esquerda - centro - direita, surgiu no final do século XVIII com a Revolução Francesa. Naquela época, quando da realização das sessões na Assembleia Nacional Revolucionária, o posicionamento ocorria de forma que os radicais, que aspiravam por mais democratização, acesso à terra e zelavam pelos interesses dos camponeses e pequenos comerciantes, chamados de jacobinos, sentavam-se à esquerda do orador, já aqueles que pertenciam à alta burguesia, grandes comerciantes e industriais, designados por girondinos, ficavam à direita. No meio, finalmente, ficava o pessoal da planície, o que hoje chama-se de centro e que naquele contexto era composto por quem “dançava conforme a música”. Cabe notar que, de forma geral, tanto a direita como a esquerda eram grupos revolucionários que haviam lutado contra o Absolutismo e contra os privilégios da nobreza, ambos, desse modo, empreenderam a revolução. Isso não é tão óbvio quanto parece para muitos dos nossos contemporâneos.
Passaram-se mais de duzentos anos desde então, tempo no qual o mundo assistiu a uma série de mudanças que tornam a realidade do século XXI completamente diversa da França revolucionária. A despeito disso, a questão do espectro político parece ter se cristalizado e, assim sendo, é utilizada de maneira semelhante ainda em nosso tempo, com todas as confusões e anacronismos que tal fato é capaz de gerar.
Uma consequência advinda dessa cristalização é a ideia simplista e obtusa de que a esquerda pode ser associada a tudo que é justo e igualitário, enquanto que à direita, coube a pecha de reacionária, preconceituosa e dominadora. É evidente que surgiu ao longo do tempo uma esquerda que pode ser dita progressista, democrática, laica e desprovida do ódio de classe. Mais evidente ainda, é o fato de que, do mesmo jeito, existe uma outra esquerda, antípoda do progressismo, aferrada a dogmas mundanos, a ideologias datadas, fortemente autoritárias, historicamente falidas e carregadas até a raiz de profundo ódio social.
Embora com a direita uma ponderação do tipo não seja tão nítida, não pelo menos no Brasil de hoje, onde talvez nem exista um pensamento genuinamente direitista, também é correto supor que as mesmas diferenciações sejam críveis. Assim, se há a direita religiosa, conservadora, - muito menos capitalista do que imaginaria qualquer jacobino moderno de plantão -  que não gosta da ciência e não enxerga que o fator liberdade pode e deve coadunar-se com a igualdade, como já ensinou Tocqueville, há também outra direita contrária a essa, pró-capitalismo devidamente organizado, defensora das liberdades civis, do direito de escolha e que aposta na gestão inteligente e democrática da sociedade como forma de correção de injustiças.
Alguém poderia protestar afirmando que essas relativizações nada mais são do que uma caracterização do centro. Bem,... a esquerda autoritária costuma qualificar o centro como sendo a direita envergonhada. Uma boa resposta para tanto é replicar designando-o como esquerda arrependida. Muito mais válido e proveitoso do que estabelecer rotulações vazias vindas no mais das vezes de quem costuma se posicionar nos extremos do espectro, é observar que os caminhos tortuosos que perfazem as temporalidades da história pedem uma mais atenta e minuciosa consideração dos contextos, das variedades oriundas do próprio passar do tempo, do espaço e dos aspectos socioculturais que marcam as diferentes sociedades. Essa maior atenção evitaria aberrações tal qual a acusação clichê de fascista feita por quem se define como sendo de esquerda ao defender, veja só, um governo nacionalista e centralizador, dirigida contra alguém que se posta mais ao centro. Evitaria ainda que aqueles que se colocam como direitistas puros pudessem chegar ao ridículo de tachar como esquerdista radical a quem defende a ciência e a democracia. Existe muito mais entre um extremo e outro do espectro político do que supõem as vãs ideologias.
Qualificações rasteiras têm como único resultado confusões quixotescas. O espectro político, caso ainda seja da vontade de tantos continuar a utilizá-lo, requer atualizações e ponderações bastante específicas e historicizadas. Os rótulos vazios, adotados em geral pelos mais puristas e fomentadores da discórdia, possuídos da crença odiosa de que um governo bom necessita derrotar ou até eliminar um ou outro setor da sociedade, não pode permanecer como essa maneira insistente e acusatória que costuma ocupar o lugar das formas de pensamento isentas de paixões, alicerce de qualquer análise racional.

* O presente artigo é especialmente dedicado aos alunos Mario Amadeu, Renan Spinola e Tiago Castagnet, sempre muitíssimo interessados em temas políticos e filosóficos.

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