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sábado, 23 de abril de 2011

Economia e moral: distinguindo ordens


Em um livro muito original e valioso, evidentemente pouquíssimo conhecido no Brasil e cujo título é O capitalismo é moral?, o filósofo francês André Comte-Sponville busca responder a questão utilizando-se das reflexões de outro pensador, bem anterior a ele, o também francês Blaise Pascal. Na obra, o autor traz à tona, adaptando-o ao mundo contemporâneo, o conceito das ordens pascalianas, abordagem que possui o grande mérito de clarear nosso pensamento no que se refere à enorme confusão que costuma pairar sobre o senso comum quando se trata de economia e questões ético-morais.
Se quisermos acompanhar Comte-Sponville, e temos razões de sobra para isso, já que o livro citado é excelente, poderemos aceitar com tranquilidade que é plenamente possível haver moralidade e ética em uma sociedade que adote formato econômico capitalista. A moral marca presença ou ausência em cada um de nós, nas pessoas, por assim dizer, não na economia. O economicismo de cunho marxista se equivoca claramente ao tentar erigir a moral no âmbito econômico, que pertence a uma ordem distinta. Erra ainda ao interpretar de modo grosseiro o já confuso hegelianismo, uma vez que Marx confunde o predicado da ideia com enunciados sobre fatos, como destacado por Eric Voegelin. É um estranho paradoxo que o marxismo, tão arraigado nas tais “leis históricas”, não seja capaz de lidar com a possibilidade do sujeito histórico, já que o enxerga preso a uma falsa concepção da realidade, a menos que ocorra o enxerto de uma suposta consciência de classe criada pela cabeça de Marx ao “observar cientificamente a história”. No fim das contas, o marxismo de Marx é muito mais idealista do que materialista.
Ao tomarmos a distinção das ordens que Comte-Sponville retirou de Pascal, temos que os sistemas econômicos, como o capitalismo, pertencem à ordem tecnocientífica, a mais restrita delas e que não envolve questões morais. A economia é amoral, o que quer dizer que as regras que dão sustento ao econômico não se situam dentro dessa ordem da tecnociência. Deixando a ordem tecnocientífica, adentra-se ao terreno mais amplo da ordem jurídico-política, na qual se aplicam as leis governamentais, que têm a função de estabelecer normas, julgar e punir devidamente as transgressões. Uma vez considerada a ordem jurídico-política, outro absurdo do marxismo de Marx é o objetivo de abolir o Estado, mais ainda se pensarmos que seu socialismo, em relação ao qual as explicações por ele oferecidas são praticamente inexistentes, enceta a necessidade de planificação. Como se não bastasse o fato de Marx acreditar que a economia pudesse impor sanções a si própria, ele ainda por cima desejava eliminar um instrumento de controle externo a ela. Não por acaso, Raymond Aron foi certeiro ao frisar que o marxismo é grande em seu equívoco e equivocado em sua grandeza.
Todavia, mesmo que a ordem jurídico-política sirva de freio à amoralidade da ordem tecnocientífica, isso só pode ocorrer até certo ponto, pois nenhuma lei é capaz de podar o “canalha legalista”. Sobretudo num sistema legalmente falho e politicamente corrupto, a ordem jurídico-política não somente é ineficaz, como age em favor dos crápulas. Os limites então devem ser buscados novamente no exterior, em uma ordem ainda mais abrangente.
Chegamos à ordem da moral, aquela que nos permite identificar a diferença entre o certo e o errado, e consequentemente, distinguir direitos e deveres. A moral é o que válido para uma consciência tranquila, o que determina um importante impedimento sobre possíveis atos prejudiciais que se possa infringir a outrem. Parece que tudo se completa com a ordem da moral, mas deve-se entretanto atentar para o fato de que ela comporta um alto grau de subjetividade. Em decorrência disso é possível que alguém atue com base na lei e exerça seus deveres e direitos, mas realize somente aos seus deveres. Fica faltando algo e, como afirma então Comte-Sponville, é preciso “completar” a moral.
O final do percurso conduz à mais abrangente de todas as ordens, a ordem ética, dentro da qual abre-se a possibilidade de estarmos coadunados com a verdade, com a liberdade e com o respeito aos outros. Aqui, vale citar Comte-Sponville: "a ética intervém nas ordens precedentes mas sem aboli-las, e muito mais como motivação para o sujeito do que como regulação para o sistema. A economia, aliás, bastaria para prová-lo: o amor ao dinheiro e ao bem estar tem seu papel, é claro, mas não basta para proporcionar nem um nem outro." Sendo assim, temos que as quatro ordens têm seu papel, todas juntas são necessárias, nenhuma, por si só, é suficiente.
David Hume e Adam Smith foram defensores do livre-comércio, ambos lidavam de modo soberbo com a noção de que a riqueza pode ser gerada, disseminada e capaz de fazer as sociedades prosperarem, desde que exista um terreno fértil, ou seja, um ambiente econômico, político, cultural e mental que a isso favoreça. No completo oposto do que acontecia durante o colonialismo, quando as metrópoles tolhiam toda e qualquer hipótese de livre-comércio por parte das colônias, o que resultava em soma zero e na concentração de toda riqueza produzida sobre o pólo metropolitano, o comércio praticado livremente enseja ganhos de parte à parte e sem as imposturas arbitrárias estabelecidas por algum tipo de dominação. A tal da “mão-invísivel”, citada fora de contexto e de maneira totalmente pejorativa pelos apólogos das limitações à economia por ela mesma, não significa nada mais do que concorrência e lei da oferta e da procura, dois princípios econômicos vigentes desde tempos muito anteriores a qualquer forma de capitalismo. Como já escrevi anteriormente, nenhum liberal clássico como os dois escoceses citados no início do parágrafo, jamais defendeu que não devessem haver mecanismos de controle sobre a economia, sendo mais importante indagar: como controlar, de onde vem o controle? Mais do que tergiversar rasteiramente a respeito de estado forte ou estado mínimo, tipo de discussão colegial e ideológica sem vínculo com a realidade, seria de fundamental importância atentar para questões morais e éticas considerando a distinção das ordens. Termino lembrando que Hume e Smith, assim como todos os grandes pensadores do século XVIII, foram pregadores éticos e morais de extrema sofisticação. Não há dialética nenhuma que possa superar a ideia de que o certo é certo e o errado é errado, um não brota do outro...

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