No ano 2000, quando o então presidente da Coreia do Sul Kim Dae-jung recebeu o Prêmio Nobel da Paz, fez o seguinte discurso:
Na Ásia, muito antes que no Ocidente, o respeito pela dignidade humana foi inscrito em sistemas de pensamento, e tradições intelectuais que sustentavam o conceito de "demos" criaram raízes. "As pessoas são o céu, o desejo das pessoas é o desejo do céu, respeitas as pessoas como respeitarias o céu". Esse já era o princípio central das ideias políticas da China e da Coréia há 3 mil anos. Cinco séculos mais tarde, na Índia, o budismo surgiu para pregar a importância suprema da dignidade e dos direitos de cada um como ser humano.
Houve também ideologias e instituições proeminentes que colocavam o povo em primeiro lugar. Mêncio, discípulo de Confúcio, disse: "O rei é filho do céu. O céu o enviou para servir ao povo com um governo justo. Se ele falhar e oprimir o povo, o povo tem o direito, em nome do céu, de se livrar dele".
E isso 2 mil anos antes de John Locke expor a teoria do contrato social e da soberania cívica.1
É bastante emblemático observar um oriental reverenciando valores que hoje são, ao menos no terreno das ideias políticas, caros à maior parte do mundo ocidental e, mais do que isso, buscando suas fontes no Oriente antigo, em períodos bem anteriores à sua formulação por pensadores do Ocidente. Isso nos deveria levar, no mínimo, à discussão sobre certos aspectos relativos à questão da cultura, para não falar na necessidade de reformulá-los por completo.
No mundo ocidental dos tempos atuais, tem sido recorrente a ideia segundo a qual existe um abismo cultural intransponível entre o Ocidente e o Oriente, o que ora é utilizado por parte de pensadores adeptos de um tipo de conservadorismo - que não é aquele que defendo - como instrumento para conferir suposta superioridade à tradição judaico-cristã ocidental, ora como discurso dos chamados culturalistas e relativistas na tentativa de mostrar uma decadência da história ocidental e de eliminar a moralidade como padrão universal de referência. No primeiro caso, cai-se na tese huntingtoniana do "choque de civilizações", no segundo, procura-se vender a noção bizarra de que tudo é relativo, descartando a própria necessidade de pensarmos em valores, postura que em última análise conduz a um absurdo lógico, pois a tolerância deixaria de servir como princípio regulador.2 As duas posições, a meu ver, são filosoficamente perniciosas.
O choque de civilizações e o relativismo são ideias opostas a princípio, mas no fim das contas se equivocam pelo mesmo motivo, isto é, admitem a cultura como sendo algo estanque e impossível de ser intercambiado. A única diferença é que em uma delas o conflito se estabelece a priori pela suposição de uma incompatibilidade inexorável, na outra, devido ao absurdo lógico de sua proposição, o conflito aparece como único resultado final. Quando confrontamos estas duas teses com o discurso de Dae-jung e com tantas outras evidências fornecidas pela história, percebemos também que ambas são anti-históricas.
O grande pecado das ideias que lidam com diferenças culturais de modo a ver nelas obstáculos intransponíveis ao diálogo, à tolerância e às relações amistosas advém da concepção pela qual a cultura, além de ser considerada estanque e fechada à circulação, como já salientei, é vista como realização máxima da experiência humana. Nisso não sobra lugar para a noção iluminista de cosmopolitismo, tampouco para o entendimento de que o ser humano, mais do que um mero fantoche dos condicionamentos sociológicos, é dotado de razão e dever de moralidade, qualidades que precisam ser enxergadas bem acima da segmentação em que a cultura implica. A aceitação das diferenças culturais, a circulação de culturas, a tolerância e o convívio pacífico entre os povos só podem ocorrer a partir de tal consideração, uma consideração filosófica que permite a clara manutenção de padrões de julgamento independentes de todo e qualquer condicionamento que não seja fruto de escolha individual. É ainda uma postura que possibilita diferenciar o que é válido e moralmente aceitável, daquilo que não o é.
Práticas que outrora foram consideradas "culturalmente aceitáveis", hoje são condenadas por questões morais. Isso nos dá argumentos irrefutáveis para reprovar ordálias, perseguições religiosas, sacrifícios, canibalismo, racismo, entre outras formas de violência. Muitas delas que ainda perduram, precisam passar pelo crivo da moralidade e da razão para que possam ser reprovadas e condenadas. A moralidade e a razão são parâmetros universais e humanos, independentes de diferenças culturais particularistas.
No Ocidente Medieval, relativamente fechado em seus limites culturais, as viagens de Marco Polo e de outros expedicionários menos famosos expandiram horizontes e ideias, proporcionando trocas e circulação, o que trouxe contribuições aproveitadas até hoje para povos de um lado e de outro do mundo.3 Na opressão da Europa absolutista, pensadores iluministas como Voltaire, Montesquieu e Condorcet recorreram a culturas extra-europeias para contestar as práticas do Antigo Regime. Do Chile ao Japão, da Escandinávia à África do Sul, a maior parte das nações do mundo atual têm a liberdade de expressão e a separação dos Três Poderes como valores preciosos. Na era da tecnologia de ponta, os modernos meios de comunicação e de transporte fazem com que informações, mercadorias e pessoas circulem com rapidez pelos quatro cantos do mundo.
Não é difícil entender que as trocas culturais entre tudo aquilo que pode ser aceito como válido é muito melhor do que se fechar por detrás de ideias causadoras de conflito. O que tem faltado é prestar mais atenção em padrões universais e essencialmente humanos que nos norteiem nesse processo. É um alento que universalistas como Dae-jung tenham sido agraciados com o Nobel da Paz em tempos nos quais vários conflitos e massacres se façam - e sejam justificados tanto por "ocidentalistas" como por "orientalistas" - exatamente por conta de condicionamentos culturais. Curiosa e lamentavelmente, tem me parecido que além das diferenças entre culturas pensadas de modo conflitivo, - tema deste artigo - ocorram trocas envolvendo o que há de pior entre povos culturalmente díspares: a China tem aprendido com o Ocidente a maneira mais eficaz de devastar o meio ambiente, bem como tem crescido no Ocidente o hábito oriental de se alimentar com coisas totalmente desnecessárias e geradoras de crueldade: não é preciso nem mencionar insetos e carne de cachorro, o que até agora não é comum por aqui, basta lembrar da tal comida japonesa, modinha que se tornou cult entre nós. E o atum está extinção... Doenças como a SARS e a gripe suína podem ser tornar pandemias globais: hábitos errôneos disseminados mundialmente, - questão que não chega a ser levantada nem no âmbito cultural, tamanha a trivialidade com que se pensa (ou se esquece) do assunto - significam o lado ruim da circulação de culturas. De um jeito ou de outro, o que sempre falta é a reflexão com base na moralidade e na razão.
NOTAS
1. Retiro a citação do excelente Os dentes falsos de George Washington, do historiador norte-americano Robert Darnton. A obra inteira é referência para o tema que aqui tratei.
2. Uma reflexão magistral acerca do absurdo lógico relativista em relação à tolerância pode ser encontrada em O fio e os rastros, em específico no ensaio "Unus testis - O extermínio dos judeus e o princípio de realidade", do historiador italiano Carlo Ginzburg.
3. São de importância fundamental neste sentido as obras do geógrafo norte-americano Jared Diamond, sobretudo, Armas, Germes e Aço.