Andar de carro em São Paulo virou quase um crime. Mais do que a carência de transporte público, mais do que a falta de planejamento urbano ou do que um trânsito culturalmente violento em relação ao qual pouco se faz para mudar, o carro se tornou o grande demônio na maior cidade do Brasil. Nesse contexto, se de um lado o carro tem sido apontado como o maior vilão, a bicicleta é alçada à condição de redentora inconteste do trânsito paulistano. O maniqueísmo e a romantização das magrelas tomaram conta do cenário.
Várias vezes já deixei claro que sou favorável ao uso da bicicleta como transporte no cotidiano, o que considero um caminho inteligente e capaz de contribuir com a qualidade do ar, com a saúde dos ciclistas e com a diminuição dos engarrafamentos. Isso, entretanto, não é mais do que o vislumbre de uma cidade e de um futuro melhores, ou seja, é algo que só pode se tornar realidade se passar por estudos minuciosos envolvendo especialistas em transporte urbano, engenheiros de trânsito e urbanistas em conjunto com a sociedade civil. Portanto, trata-se de uma ideia que necessita de longo e bem pensado planejamento e que depende ainda de implantação gradual, apenas estabelecendo-se em definitivo no momento em que houver uma estrutura pronta para tornar possível e salutar o convívio entre motoristas e ciclistas. Todos sabem, evidentemente, que São Paulo está muitíssimo distante de tal panorama.
Pela topografia, pelo número de habitantes, pelo tamanho, pela deficiência nos transportes públicos, pela cultura dos cidadãos e pela própria ausência de ciclovias bem arranjadas, São Paulo não é Amsterdam, Berna ou Copenhague, embora o sr. Gilberto Kassab e alguns adeptos do politicamente correto queiram fazer crer que seja. Assim como os lugares comuns do discurso (e da ignorância) conseguiram impingir na mente de tantos incautos que o capitalismo é ruim, que Marx é a última palavra em economia ou que vivemos na era do "neoliberalismo", a mais nova investida de certos ideólogos no âmbito da capital paulista é a demonização do carro e a beatificação das bicicletas. O pensamento ideológico amarrou seus tentáculos também quando o assunto é trânsito.
No balaio do equívoco e da superficialidade, bons motoristas são julgados do mesmo modo que os pilotos que cruzam as ruas de São Paulo: "são todos vetores do que há de pior, são alienados que não atentam para os benefícios do ato de pedalar, insensatos que só enxergam o próprio umbigo, incapazes de fazerem parte da grande comunhão harmônica que deve permear a sociedade". A linguagem hiperbólica e o maniqueísmo são sintomas típicos de ideias que começam a tomar conotação de fanatismo. Da mesma maneira que carros e motoristas são estigmatizados sob o mais acentuado negativismo, as bicicletas e os ciclistas assumem instantânea condição ilibada: quem pedala nunca está errado, nunca está transitando em cima da calçada ou na contramão, jamais faz uma conversão proibida ou joga a bike para cima de um carro. Por ser ecologicamente correta e vista como antípoda do trânsito caótico da capital paulista, a bicicleta foi rapidamente blindada e colocada acima do bem e do mal. O absolutismo ciclístico já é uma realidade. Dentre seus mais destacados teóricos, temos Renata Falzoni, Flávio Gomes, que viveu seus cinco minutos de Datena no dia em que a médica ciclista morreu na Avenida Paulista, Maurício Broinizi, intelectual puquiano, representante do esquerdismo tupiniquim e claro, nosso prefeito que, não é um homem nem de direita, nem de esquerda, mas somente o mentor das faixas de trânsito transformadas em faixas ciclísticas, "invenção genial" que fez também o domingo se tornar um dia de caos no trânsito.
Agora está virando moda filmar ou fotografar motoristas que cometem supostas infrações contra ciclistas. Corre-se o risco de gerar um ambiente ainda mais agressivo no trânsito, até porque as autoridades não podem fazer nada a partir de imagens obtidas por cinegrafistas/fotógrafos amadores. E, se é assim, não seria também o caso de motoristas passarem a flagrar os tantos absurdos cometidos por ciclistas? Nenhum motorista é obrigado a andar a 20km/h porque um ciclista transita quase no meio da faixa em uma via de grande movimento. Nenhum motorista tem o que fazer se um ciclista imprudente joga a bicicleta em cima de seu carro, a não ser tentar desviar bruscamente. Ciclistas podem provocar acidentes por conduta inadequada, não apenas motoristas.
Não há legislação clara sobre a conduta do ciclista, não há ciclovias em 95% da malha viária em São Paulo - por ciclovia entenda-se espaços exclusivos para uso de bicicletas, de modo a garantir a segurança dos ciclistas -, não há semáforos específicos para as bicicletas, não há, até hoje, não somente na capital paulista, mas na maior parte das cidades brasileiras, uma cultura que viabilize os usos e costumes da prática do ciclismo urbano, apta a permitir boa convivência entre autos e bikes. Repito, tudo isso requer tempo e planejamento, e então fica a indagação: alguém, seja autoridade ou cidadão engajado no assunto, está se mobilizando para que esses pré-requisitos fundamentais se concretizem, caso haja o desejo da bicicleta vir a ser considerada um meio de transporte viável e seguro? Em relação aos políticos, pelo menos, a resposta é não. Sem isso, não adianta querer forçar a barra, tampouco discursar vazia e hiperbolicamente, pois a situação não irá mudar: devido à vulnerabilidade inerente do ciclista, acidentes continuarão a acontecer, com claro prejuízo a este.
Políticos são useiros e vezeiros em promover bizarrices originadas a partir de uma ideia boa, mas que não se pode colocar em prática da noite para o dia. Assim, inaptos para resolverem aquilo que é necessário de antemão, impõem medidas claramente improvisadas para enganar aos trouxas, que não são poucos a embarcar na onda das aparências e do politicamente correto. Se querem mais bicicletas nas ruas, elaborem e erijam uma estrutura para isso, mas que não venham com improvisos toscos e com perseguição a quem faz uso do carro. Ditadura até no trânsito não!