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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Trabant: um brinde ao consumo e à riqueza sob o comunismo


Certa vez escutei de alguém palavras que diziam o seguinte: "as pessoas confundem comunismo com franciscanismo, o que é um erro, pois o comunismo tem o objetivo de espalhar a riqueza". Aquilo me estarreceu, já que, de fato, ambos nunca deveriam ser confundidos, mas se a primeira parte da sentença soava correta, a parte final transmitia uma ideia absurda, inteiramente desconectada da realidade e da observação histórica. Ainda que o objetivo final do comunismo possa ser o bem estar geral, ele sempre se mostrou terrivelmente falho neste intento. Também com relação ao franciscanismo, igualmente havia um equívoco gritante, haja vista que se estava impondo uma visão materialista sobre uma filosofia cuja linha mestra vai em sentido oposto.
O voto de pobreza de Francisco de Assis e de seus seguidores jamais teve qualquer conotação de fundo material. Se os franciscanos renunciaram ao conforto que lhes era possível, em uma Idade Média em que as privações eram comuns a um número de pessoas muito amplo, renegar as posses materiais nem poderia alcançar um apelo digno de louvores e respeito por parte da sociedade. Mais importante, no entanto, é ressaltar que o franciscanismo foi adotado por um círculo relativamente restrito de adeptos, aspecto do qual advêm três características que o diferenciam positiva e radicalmente do comunismo: 1) para que alguém se tornasse um seguidor dos ensinamentos de Francisco, bastava a livre e espontânea vontade, ou seja, o movimento não carregava qualquer intenção cooptativa; 2) o movimento surgiu como uma alternativa ao cristianismo que se fazia dominante à época, pregando um retorno aos primórdios da fé cristã, bem anteriores à ortodoxia da Igreja - se pouquíssimo tempo depois de sua morte Francisco foi canonizado e o franciscanismo incorporado à ortodoxia, isso se fez de maneira totalmente exógena ao movimento; 3) o voto de pobreza dos franciscanos era condição sine qua non para que alguém se tornasse efetivamente um franciscano, portanto, a renúncia às posses assumia caráter puramente ascético, o que diferenciava os franciscanos do restante da sociedade - note-se o abismo em relação ao ideal uniformizante do comunismo -, além do que era compartilhada e mantida por todos os seguidores do movimento, inclusive pelos líderes, evidentemente. No movimento franciscano não havia lugar para algo como "todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros". Quando uma situação que pudesse levar a isso começou a se insinuar, imediatamente Francisco se tornou reticente e recolheu-se ao claustro para vislumbrar seu próprio fim.
O comunismo romântico, tributário das ideias do jovem Marx, nunca teve como objetivo espalhar a riqueza, tampouco gerá-la, o que é necessário para que seja distribuída. Essa vertente do pensamento comunista conheceu várias tentativas de implantação em diferentes lugares ao longo dos últimos cem anos, aproximadamente, bem como foi descartada tantas outras vezes. Nesse caso, o horizonte final do comunismo é um idílio quase espartano, permeado de altruísmo e autossacrifício, simplicidade e criatividade. Aqui o comunismo poderia estar próximo do franciscanismo, porém, como existe uma incoerência intransponível entre o alto grau de espontaneidade exigido por esse tipo de idílio e a centralização disciplinadora inerente à imposição comunista, formas pragmáticas, autoritárias e totalitárias tomaram o lugar da vertente romântica e produziram os maiores genocídios do século XX. Stalin e Mao Tse-tung deram forma ao chamado socialismo real não porque fossem negadores do marxismo, mas porque se depararam com os erros grotescos do próprio Marx, ele que na maturidade, diante das lacunas de sua filosofia, já havia sido obrigado a atirar para longe muito daquilo que defendera anteriormente.
Após os repetidos fracassos dos sistemas comunistas, já em uma época mais recente de distensão e de abandono da retórica de cunho romântico e utópico, Leonid Brezhnev assumiu o governo da URSS em meados da década de 1960 e passou a assumir um discurso que de alguma forma pudesse agradar à população exausta das promessas jamais cumpridas do comunismo. Era hora de associar o regime comunista com a capacidade de proporcionar conforto e satisfação à sociedade. Observe-se que somente após quase meio século de experiência comunista o governo da URSS se prestava a olhar com mais atenção para um desejo que, exceto por parte dos poucos que se tornam ascetas, é algo comum à maioria dos indivíduos. Foi durante este período que Brezhnev começou, juntamente com alguns países-satélites da URSS no Leste Europeu, a destinar mais recursos às indústrias de bens de consumo. A situação de penúria poderia ter melhorado se os cinquenta anos desde a Revolução Russa não tivessem pulverizado o mercado: a baixíssima produtividade, a impossibilidade do cálculo, da precificação e da alocação de recursos em economias fortemente acostumadas com o planejamento central não permitiram a produção de bens de consumo de qualidade e capazes de atender à demanda, problema que até hoje deixa resquícios em países que estiveram sob regimes comunistas, inclusive na atual Rússia.
A partir do fim dos anos 1960 e início dos 1970, a URSS de Brezhnev montou uma espécie de convênio com seu satélite na Alemanha Oriental para produzir o Trabant, veículo feito com carroceria de plástico, altamente agressiva à natureza. Os primeiros Trabants foram encomendados na URSS em 1976. Treze anos depois, em 1989, já nos estertores do comunismo à época de Mikhail Gorbachev, eles começavam a chegar aos encomendantes. Não, não ria! Apenas nunca se dê ao desplante de defender o comunismo e de acreditar ingenuamente que esse sistema se faz apto a proporcionar o bem estar das pessoas ou seja capaz de espalhar a riqueza. No máximo, o comunismo espalhou a pobreza por imposição e a ausência de liberdade. Francisco de Assis e seus seguidores fizeram voto de pobreza espontâneo, adotaram o ascetismo moral e se dispuseram a ajudar os necessitados. Se estiver farto do capitalismo de massas, o franciscanismo é uma opção bem melhor!

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