Protected by Copyscape Original Content Checker

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Cultura como liberdade


O termo "cultura", com todas as implicações que traz consigo, ocupa um lugar de extrema importância para a humanidade desde o primeiro momento em que os seres humanos começaram a se organizar no que se pode chamar de civilização: existência de ordenamento político, divisão do trabalho minimamente especializada, trocas materiais (e circulação de ideias), certo desenvolvimento da vida em cidades e as próprias realizações culturais advindas de tal processo. Note-se aí que o conceito de civilização carrega sentido organizacional, nada mais.
O marco cronológico civilizacional se dá por volta da metade do terceiro milênio a. C., época em que, juntamente com a própria ideia de civilização, as sociedades começam a se preocupar com questões relacionadas à cultura. Poder-se-ia objetar que a cultura, como realização humana, tem seu início assim que os seres humanos pela primeira vez existiram sobre a Terra, sendo portanto, muito anterior à civilização. De fato, o período Pré-Histórico, a começar pelas mais remotas eras do Paleolítico, nos fornece exemplos de realizações culturais altamente significativas: a descoberta do fogo, a invenção do arco e flecha e a prática da agricultura nos bastam como exemplos incontestáveis de que a cultura acompanha o Homem bem antes que houvesse surgido qualquer tipo de organização social especializada, indicando a diferenciação básica entre natureza e cultura1. Isto posto, todavia, antes da civilização, a cultura estava mais ligada a possíveis respostas humanas, ou intervenções técnicas em relação à natureza hostil, do que traduzia inquietações sistemáticas e constantes em torno de temas diversos indicadores da complexidade da experiência do ser humano e da noção de que esta mesma experiência não pode jamais ser inteiramente compreendida. Cultura, então, a meu ver, mantém ligação íntima com a busca de significados para a transcendência sobre o material e o mundano e seus desdobramentos mais sublimes e duradouros, em última análise, se dão no âmbito da interioridade. É evidente que se tem aí um processo histórico que não descarta a cultura pré-civilizacional, como assim designei, mas meu objetivo neste artigo não é pensar uma história da cultura e sim focar a atenção nas interpretações que o conceito de cultura envolve na contemporaneidade.
Atualmente, tem sido bastante comum observar doutos e até mesmo leigos promoverem um esforço praticamente doentio no sentido de definir cultura. Ora, há um sem número de definições mais ou menos válidas que, no fim das contas, não dão conta de orientar ninguém a respeito do valor que a cultura deve ter. Enquanto muito tempo é perdido nas vãs tentativas de definição, pouca ênfase é dada na maneira como sociedades, mas sobretudo indivíduos, subsumem a cultura e como sentem e imaginam seus desdobramentos. O idealismo de Fichte, o marxismo, o nietzscheanismo, o pós-modernismo e o existencialismo de Heiddeger têm em comum o fato de adotarem uma conceituação de cultura em termos de totalidade, tipicamente antiliberal, sem que aspectos qualitativos geradores de desdobramentos universais sejam levados em conta - comentarei a respeito disso logo a seguir. Uma linha de raciocínio divergente foi defendida pelo historiador José Murilo de Carvalho em recente entrevista no programa Roda Viva e o cientista político Bolívar Lamounier também toca no assunto em seu novo e excelente livro, Tribunos, profetas e sacerdotes. Com o apoio desses pensadores, traçar as conexões entre educação, conhecimento e cultura é um ponto de partida útil, mesmo sem ser plenamente original, para a necessidade de ensaiar algo acerca das interpretações da própria cultura.
As tentativas de definição de "cultura" que abordei mais acima são interpretações voltadas para a totalidade, isto é, enxergam na cultura um elemento que já surge plenamente desenvolvido, onipotente, pronto, acabado, tentacular e que serve, mais do que qualquer coisa - e talvez somente carregada dessa função - para fins identitários2. Assim, o indivíduo que não sente afinidade com esta ou aquela cultura, que não encontra possibilidades de sublimar os desdobramentos culturais específicos em termos de transcendência e interioridade, é imediatamente lançado à anomia. Interpretada de tal modo, a cultura atua como castradora e não alcança nenhum valor passível de universalização, logo, é incapaz de pairar acima das limitações nacionais, étnicas, de classe e de gênero ou, na vertente pós-moderna, toma a forma de um niilismo cujo resultado é anárquico e autodestrutivo. Um mínimo de perspicácia e já se pode notar que estas interpretações são absolutamente autoritárias e provenientes do pensamento de esquerda. Ninguém deve esquecer que o objetivo de destruir o indivíduo, sua liberdade e sua vida interior encontraram no marxismo cultural de Gramsci (uma espécie de cadinho no qual se misturam muitos dos paradigmas de esquerda), a partir das últimas quatro ou cinco décadas, seu caminho mais eficaz e sombrio. Frisa-se uma vez mais que o resultado de tais interpretações - se não for a destruição da alta cultura, que poderá sobreviver no recôndito de mentes brilhantes - é a profunda decadência cultural, quadro este que já se verifica nitidamente em várias sociedades, alijando muitos indivíduos da possibilidade de educação, conhecimento e formação do caráter, assim acabando por condicioná-los a uma existência sem propósito.
De um ponto de vista liberal, a cultura é interpretada não a partir de sua estrutura geral e indistinta, mas sim de acordo com manifestações específicas que sejam dotadas de qualidade e valores universalizáveis. É só através desta espécie de filtragem promovida com base em critérios filosóficos e em certa medida estéticos, consolidados ao longo de séculos, que se concretiza a alta cultura, aquela que fornece aos seres humanos a oportunidade do autoconhecimento, da transcendência e da compreensão ontológica, ainda que de forma não completa, já que os mistérios precisam continuar existindo para que eles próprios abram margem para a criatividade e para o processo gerador da cultura. Nesta perspectiva, não é a cultura, assumida de maneira prescritiva, que abarca o indivíduo e o asfixia em uma prisão identitária da qual não sobram espaço nem direito para o estranhamento3, é o próprio indivíduo, dotado de liberdade, que busca a relação de afinidade com manifestações culturais diversas e potencializadoras de sublimação interior. É uma perspectiva de liberdade, valorizadora da cultura por seus elementos qualitativos, contrária à legitimação de práticas culturais causadoras de prejuízos físicos, morais ou espirituais. Se revela contrária ainda, à ideia de que tudo que existe se legitima apenas por existir, ciosa da necessidade do exame moral interior na avaliação daquilo que se apresenta diante do Homem. É a perspectiva que procuro levar comigo.

1. Longe de mim corroborar a noção marxista de natureza como mero cenário de ações humanas, dado que todas as relações do ser humano com o meio natural, sejam essas materiais ou contemplativas (em sentido lato), são vetores de cultura. O que se intenta mostrar é tão somente que a cultura depende das realizações humanas, enquanto a natureza, ao contrário, independe disto.

2. Na Grécia Antiga, berço cultural do Ocidente, em que pese a força da alteridade, é necessário considerar os contextos local e regional, muito mais significativos do que o são atualmente. Ademais, o desenvolvimento cultural grego, tributário de um processo que aliou espiritualidade e racionalismo de modo ímpar, é humanista, antes de ser propriamente grego. O classicismo e o universalismo, observados em diversos campos da cultura e da ciência gregas, são exemplos que confirmam esta avaliação. Ver Pierre Lévêque, A aventura grega, Edições Cosmos, Lisboa - Rio de Janeiro, 1967 e Werner Jaeger, Paidéia, Martins Fontes, São Paulo, 2001.

3. Para uma reflexão acerca do conceito de estranhamento, ver o ensaio de Carlo Ginzburg, "Estranhamento: Pré-história de um procedimento literário", em Olhos de Madeira, Companhia das Letras, São Paulo, 2001, pp. 15 a 41.

Nenhum comentário:

Postar um comentário