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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Capitalismo(s) sem molde economicista


“O capitalismo é exploratório e gerador de desigualdades sociais”. Poucas ideias são tão batidas quanto esta, que há tempos se tornou lugar comum e um dos carros-chefes do pensamento chamado “politicamente correto”, algo que já infestou praticamente todos os círculos da sociedade, ao menos em se tratando de Brasil.
O marxismo rasteiro e panfletário que faz a cabeça de quem culpa o capitalismo por todos os males do mundo, é de fato o ópio de tantos intelectuais, na célebre formulação de Raymond Aron. Desconfio que muitos arautos do socialismo revolucionário não chegaram nem mesmo a ler O Capital na íntegra, quanto mais a obra inteira de Marx. O Manifesto Comunista basta para que certos setores ditos de esquerda abracem algumas das teses marxianas como se fossem a Verdade única e acabada, a chave-mestra para a compreensão das sociedades humanas. Nem é preciso frisar que várias distorções e vulgarizações do próprio pensamento do filósofo alemão estão pressupostas nesse processo. Curiosamente, nove entre dez pensadores hoje em dia assumem sem o menor o problema que o marxismo mais tradicional, aquele que opera com o paradigma do par base-superestrutura, já está há muito superado e não consegue explicar a complexidade do mundo atual, (essa ponderação é feita na Europa e nos EUA desde a década de 1960, no Brasil, pelo menos há uns 20 anos) mas nem assim a formulação vulgar a respeito do capitalismo deixa de ser amplamente aceita em tantas situações.
Num nível bastante simples e por questões óbvias relativas à paixão ideológica, o ódio ao capitalismo provém da carência de observação histórica e da própria força da vulgata marxista, (não do pensamento marxiano) que pode ser concebida como uma forma de religião mundana e materialista, pautada pelo economicismo, ou seja, a atribuição por parte desses marxistas, à primazia da dimensão econômica na experiência das sociedades. Essa constatação conduz a um patamar mais obscuro e pouquíssimo discutido nas Humanidades, ainda que emane do acordo quase que geral entre os pensadores, citado no parágrafo anterior. Em outras palavras, a vulgarização é fruto de uma espécie de molde economicista que faz pensar o sistema econômico, o capitalismo no caso, como um modelo único que funciona exatamente do mesmo modo em qualquer sociedade ou cultura. Tal aberração esquece completamente as outras dimensões - que não a econômica - componentes da experiência social e que sustentam culturas e modos de pensar absolutamente distintos. É um desprezo ao consenso da superação do par base-superestrutura e um absurdo histórico, filosófico, político, sociológico e antropológico. Pensar em “o” capitalismo, sem relativizações que considerem as tantas dimensões sociais, é um dos mais equivocados reducionismos vigentes nas Humanidades.
Em princípio, o mesmo se daria para com o socialismo, no entanto, as teorizações sobre esse sistema são quase todas realizadas com base no próprio marxismo e permeadas pela noção de totalidade e de fatalismo que nunca estiveram presentes no capitalismo e que por isso mesmo exigem sua relativização. Além da Terceira Via de Anthony Giddens, execrada por qualquer marxista revolucionário, não me parece haver outro socialismo que não o da cartilha vulgarizada, com todos os esquematismos, etapas e métodos pré-estabelecidos que lhe são característicos, de modo que tentar salvar o socialismo do dogma no qual está atolado seria de um esforço teórico certamente insolúvel.
Uma possível objeção à proposta da relativização do capitalismo vem da tese da dependência externa e do que se designa “periferia do capitalismo”. Segundo essa linha, o capitalismo atuaria como uma rede global na qual os países desenvolvidos manteriam os subdesenvolvidos num quadro de dependência em relação à tecnologia e obrigados a fornecer bens primários e de pouco valor agregado às nações ricas. Nesse âmbito, não haveria “capitalismos”, mas um capitalismo único e controlado pelos poderosos países do centro. É uma ideia bastante comum e muito utilizada pelos críticos do capitalismo, mas me parece que perde de vista a existência, nos países subdesenvolvidos, de sujeitos históricos capazes de determinar em alguma medida os rumos de suas sociedades. Tampouco atenta para o caso de nações como Coreia do Sul e Finlândia, que há não muito tempo faziam parte da tal periferia, mas ao gerir de forma inteligente e eficaz seus problemas internos, passaram a fazer parte do centro. Essa concepção se baseia ainda no passado colonial das nações subdesenvolvidas e na questão da acumulação primitiva de capital, no que então também se torna incapaz de explicar o sucesso atual de ex-colônias de exploração, como Bahamas, Cingapura, ou até mesmo o Chile, que tem grandes chances de virar uma nação desenvolvida em questão de pouco mais de uma década. Estudos como os de David Landes e Jean-François Revel, isso para não citar Max Weber, são convincentes quando mostram que o surgimento do capitalismo se deveu muito mais a fatores socioculturais específicos do que a um projeto global e organizado de exploração colonial. No mais, as nações que hoje se resumem à exportação de commodities são geralmente governadas por populistas que se consideram de esquerda e que não se preocupam com investimento em educação, pesquisa e tecnologia.
As análises históricas são fecundas em revelar a eficiência de sistemas capitalistas na redução das desigualdades e na promoção do desenvolvimento. Na mesma toada, não é preciso refletir muito para concluir que não houve experiência socialista que tenha deixado de promover banhos de sangue, mortes aos milhões e descambado em políticas autoritárias/totalitárias. Isso já bastaria para imputar as mais severas reprovações a esse sistema, mesmo se em alguma de tais experiências o sucesso tivesse sido alcançado ao fim do processo, porém, foi algo que também jamais aconteceu.
Ao se pensar nas dimensões históricas que compõem as sociedades, vislumbram-se as diferenças entre o capitalismo suíço e o brasileiro, ou entre o que se passa nos EUA e aquele que vigora na França, ou ainda entre o sistema inglês e o sul coreano, exemplos não faltam... Sendo assim, uma correta avaliação sobre “o capitalismo”, passa necessariamente pela sua relativização de modo a considerar que esse sistema varia de acordo com o substrato sociocultural de cada nação. A grande vantagem dessa reflexão é  permitir entender que o capitalismo pode ou não funcionar bem de acordo com as variações e combinações socioculturais das quais o próprio sistema econômico faz parte, ao passo que o reducionismo, filho legítimo da vulgata marxista, apenas perpetua as doutrinações e a incompreensão, sem lançar nenhum raio de luz na discussão.

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