Hoje, venho aqui a postar de modo imprevisto e breve, apenas para destacar e oferecer aos leitores o encontro com a excelente resenha da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz sobre o livro Esperando Foucault, ainda, (Cosac & Naify, 2004) escrito por outro antropólogo, o norte-americano Marshall Sahlins. A obra traz inúmeras ideias em relação às quais mantenho forte apreço intelectual e que marcaram minha formação como historiador, juntamente com outras perspectivas do mesmo tipo.
Sahlins é um daqueles pensadores que não têm medo do conhecimento e suas argumentações constituem exemplo cabal da revanche bem sucedida que o paradigma científico-cognoscitivo travou contra o ceticismo relativista, já nem tanto uma moda como o era há alguns anos, exatamente em face da derrota que lhe foi imposta por quem acredita que a ciência vale a pena.
Paro por aqui e dou todo o espaço ao brilhantismo de Sahlins e Moritz. Se um a cada dez leitores comprar o livro, estarei mais do que satisfeito.
 Pensamentos para colecionar e guardar
"Pelo menos no que concerne à antropologia,    duas coisas  são certas a longo prazo: uma delas é que estaremos    todos mortos;  mas a outra é que estaremos todos errados. Evidentemente    uma carreira  acadêmica feliz é aquela em que a primeira coisa acontece    antes da  segunda". É dessa maneira irônica e a um só    tempo irreverente que  Marshall Sahlins, professor emérito da Universidade    de Chicago e  autor de uma série de obras consagradas – como Cultura    e Razão Prática, Ilhas de História, Historical Metaphors    and Mythical Realities – inicia  uma espécie de entretenimento,    depois do jantar oferecido pela  Associação de Antropólogos    Sociais da Commonwealth, em julho de 1993.  Publicada pela primeira vez nesse    mesmo ano, pela Prickly Pear Press  (onde Sahlins é editor executivo),    a palestra foi expandida para se  transformar nessa publicação    que, no Brasil, recebeu verdadeiros  requintes editoriais, tal a originalidade    do projeto gráfico, que  guarda coerência com o próprio estilo    pouco comportado do texto. 
O  ensaio oscila entre momentos de muito humor    misturados com questões e  impasses vivenciados pela antropologia social    e pelas ciências  humanas, de uma maneira mais geral. São frases    soltas, reflexões  isoladas, provocações por todos os lados    que vão costurando e  relembrando as conhecidas teses de Sahlins. Por    sinal, o livro, cuja  tradução cuidadosa é de autoria de    Marcela Coelho de Souza e Eduardo  Viveiros de Castro, traz momentos impagáveis    que mais valem ser  reproduzidos tal qual aforismos. Ficamos sabendo, por exemplo,    que "a  realidade é um belo lugar para se visitar (filosoficamente)    mas  ninguém nunca morou lá". Com relação à    velha mania estruturalista,  Sahlins contra-ataca com um trocadilho – "don't    be Saussure". Isso  sem esquecer da referência ao crítico palestino-americano,     recentemente falecido, Edward Said: "Em antropologia, há certos     problemas para os quais não há Said(a)." Contra o romantismo    das  etnografias funcionalistas, nada como o antídoto: "Um povo que     concebe a vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser  cronicamente    infeliz." Acerca do tema da alteridade, que marca o  próprio nascimento    da disciplina, lá vai a máxima: "Se a antropologia  é    realmente crítica cultural, bem poderíamos trazer de volta Hobbes     e Rousseau que tinham ao menos consciência de estar inventando um  Outro    antitético para fins políticos salutares." 
Nem  a boa e velha civilização resta    impune: "Primeira lei da  civilização: todos os aeroportos    estão em construção. Segunda lei da  civilização:    estou na fila errada..." Por fim, um resvalo na  história: "Se    a antropologia foi por demasiado tempo o estudo dos  'povos sem história',    a história andou, por mais tempo ainda,  estudando 'povos sem cultura'.    Felizmente, toda essa história passada  é também uma antropologia    (ultra)passada – se não vice-versa." 
Mas  o livro não é só feito    de ironias. Nele encontramos, sempre em  pequenas pitadas, a noção    de dinâmica cultural, que marcou a obra de  Sahlins, e a idéia de    que a cultura está sempre em transformação. Na  definição    do antropólogo "as culturas são como os rios: não    se  pode mergulhar duas vezes no mesmo lugar pois estão sempre mudando".     Sahlins enfrenta também a mitologia da etnografia e a caricatura que     parece vincular exclusivamente a antropologia à prática de campo:     "etnografia é antropologia ou não é nada". Isso    sem esquecer do  sarcasmo contra os pós-modernos, que teriam acusado Sahlins    de onerar  a antropologia com "noções perigosas", negligenciando    o caráter  politicamente fraturado da cultura. A reação    de Sahlins, que já havia  dedicado outro livro – Como pensam    os Nativos – ao assunto, é  breve, mas lapidar: "é    sempre bom lembrar que esses povos não  sofreram e pereceram apenas para    adubar nossos pobres campos  intelectuais". 
No entanto, o tema mais contundente é    também aquele que dá nome ao livro: a questão do poder    e o "paradigma du jour",  o tema da identidade. Sahlins concentra    seu ataque ao que define  como a corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzscheana    com o poder.  Seria ela a mais recente e incurável encarnação    do funcionalismo,  levando à dissolução de formas culturais    específicas, transformadas  em efeitos instrumentais genéricos.    Definido como uma espécie de  "buraco negro intelectual", o    poder cumprira o papel de sugar  qualquer conteúdo cultural e de transformá-lo    em simples  "resistência, dominação, colonização,    hegemonia e contra-hegemonia".  Ao invés de formas culturais encontraríamos    termos de dominação, como  se tudo que pudesse ser relevante para    o poder fosse – apenas – o  poder. Além do mais, no lugar    de "cultura" seria introduzida a noção  foucaultiana    de "discurso" e seu desdém reificado pelo suposto  caráter    antigo e ultrapassado de tal conceito. Vitoriosa seria, por  fim, a "mão    invisível" do poder, que emanaria de toda parte,  saturando relações,    instituições, corpos, saberes e disposições.  Admirável    mundo novo, esse o nosso, que traria consigo um elenco  inusitado de personagens,    estrelando sujeitos burgueses, sujeitos  nacionais, sujeitos pós-modernos,    sujeitos coloniais, sujeitos  pós-coloniais, sujeitos africanos pós-coloniais...    
Assim,  se de um lado pode-se dizer que, com essa    pequena obra, Sahlins  estaria apenas desfazendo (e desconsiderando) seus críticos     pós-modernos, por outro, não há como negar a atualidade    do debate.  Afinal, a cultura, para esse autor, não é jamais um    papel em branco  onde se inscrevem modelos vindos de fora. Ao contrário,    sua absorção  passa pela reavaliação da própria    estrutura pela história, e  vice-versa. Definindo-se como uma espécie    de "estruturalista  histórico", Marshall Sahlins entende a cultura    como uma ordem  estrutural de significação, sem descurar da idéia    de que seus  conteúdos alteram-se diante da história. "Basicamente    a idéia é muito  simples. As pessoas agem de acordo com circunstâncias    de sua própria  cultura... O processo histórico se movimenta como    um contínuo entre a  prática da estrutura e a estrutura da prática."    (Sahlins, 1986, p.  72, tradução minha). 
É esse processo que Sahlins denomina,    em Ilhas de História, como "a reavaliação    funcional de categorias", nesse movimento que o leva a nuançar dicotomias    rígidas: estrutura versus história, sistema versus    evento, sincronia versus  diacronia. O desafio é "historicizar    a noção de estrutura" e, ao  mesmo tempo, verificar como as    estruturas se realizam no interior da  ordem cultural. Não existem respostas    unívocas, uma vez que as  próprias Histórias nativas condicionam    e redirecionam a incorporação  das mesmas. Diante do contexto recente,    quando se afirma a imposição  da tão falada globalização,    as concepções de Sahlins têm o mérito de  mostrar    que a leitura do capitalismo em países periféricos se dá,     também, a partir das distintas lógicas nativas, que geram resultados     culturais diversos e, muitas vezes, inesperados. É o "retorno da     cultura" que, vista a partir da ótica da recepção,    possibilita  imaginar que não estaríamos todos condenados, igualmente,    à  mundialização. Os povos organizam culturalmente sua experiência    e  "cada cultura é (no limite) um sistema mundial", diria Sahlins    em  entrevista recente (Peixoto; Pontes; Schwarcz, no prelo), mostrando como     é preciso dar voz aos "povos periféricos", na melhor    tradição  antropológica que sempre se definiu, nas palavras    de Lévi-Strauss  (1975), como "uma ciência social do observado".    
O  debate é também com a filosofia    da história e com o suposto de que  as culturas carregam suas próprias    leituras, suas próprias  historicidades. Aí estaria o projeto intelectual    mais amplo desse  último autor, implicado como está na tentativa    de explicar de que  maneira a infra-estrutura econômica é ela própria    organizada pelo  esquema cultural, assim como a nossa lógica ocidental    do poder.  Outras histórias e outros tempos falariam das maneiras próprias    das  culturas se traduzirem e de serem relidas no contato umas com as outras.     
Como se vê, não há  como resenhar    (comportadamente e de forma linear) um livro como esse,  que é feito,    na verdade, de um punhado de ideias e um monte de  provocações.    Relativismo, globalização, identidades, modernidade,  pós-estruturalismo,    pós-modernidade, história... tudo parece estar –  divertidamente    – em questão e, definitivamente, fora do lugar. 

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