“Os homens são induzidos a acreditar que, de maneira maravilhosa, todos se tornarão amigos de todos, especialmente quando escutarem alguém denunciando os males que estão ocorrendo agora nos Estados, (...) supostamente originados pela posse da propriedade privada. Tais males, no entanto, derivam de causa diferente - a maldade da natureza humana". (Aristóteles - Política, 1263b, II)
“A sociedade não pode existir a menos que um poder controlador sobre a vontade e o anseio seja estabelecido em algum lugar, e quanto menor for esse controle dentro da sociedade, mais deverá ele vir de fora. Está determinado na constituição eterna das coisas que os homens de mentes dissolutas não devem ser livres". (Edmund Burke - Carta a um membro da Assembleia Nacional)
A Inglaterra esteve sob caos na semana que se passou. Manifestações de extrema violência varreram áreas periféricas de cidades como Birmingham, Liverpool e sobretudo Londres, inclusive provocando grande quantidade de mortos e feridos. Fenômenos sociais como esse não chegam a suscitar estranhamento quando ocorrem em países subdesenvolvidos, onde são verificados com frequência mais constante, mas sempre despertam surpresa em se tratando de nações desenvolvidas.
Perante essa situação, as explicações de vários intelectuais vêm à tona, compondo não aquela miríade de análises que poderia atribuir as causas dos acontecimentos a uma gama variada de motivos, como na época de Platão e Aristóteles, Tocqueville e Marx, ou mais recentemente, nas polêmicas entre Aron e Sartre, mas ao invés disso, com algumas tímidas variações, apontando diretamente para o fator econômico, para a globalização que, como se agisse tal qual um sujeito histórico concreto, porém dotado de poderes supra humanos, fosse capaz de calar a voz de outros atores sociais excluídos pelos processos globalizantes. Assim entendida, a globalização não pode assumir nenhum tom dissonante, a riqueza do debate se exaure e apenas um único pensador sintetiza o cerne das discussões levantadas por praticamente todos os outros.
É fácil isolar a economia e eleger o vilão global do capitalismo financeiro, uma vez que a impessoalidade dessa análise exclui o fator humano e faz com que a argumentação se encaixe perfeitamente nas lacunas da linguagem elíptica, receita fadada às abstrações e generalizações que rapidamente são tomadas como verdade inapelável, desnudada pela suposta isenção e olhar altaneiro, acima das brumas da alienação, trazidas a público pelos pensadores de esquerda, mas que a “burguesia” insiste em não querer enxergar, pois isso foge aos seus interesses mesquinhos e imediatistas. Se as explicações dessa extensa lista de analistas, que vai do propagandista charlatão Michael Moore, passa pela superficialidade de um Chomsky e chega até o rebuscamento de um Bauman ou de um Zizek, estiverem certas, temos uma contradição básica, isto é, os defensores da globalização se recusam a atentar para aquilo que lhes colocará um fim. Armadilha da ideologia burguesa...
Quem foram aqueles que alguma vez procuraram investigar porque um monge tibetano condena atos violentos? Sim, os preceitos budistas, mas o que os levaria a agarrar a fé com tanto esmero? Quem explica o fato de que no Japão a modernidade e a tradição estão juntas e em todos os lugares? Quais os fundamentos antropológicos, culturais e filosóficos dessa conciliação? Como um norueguês, habitante de um país riquíssimo, imerso na prosperidade, que nem mesmo faz parte da UE e distante do turbilhão que parece abalar as estruturas contemporâneas, pôde cometer atos brutais de terrorismo? Essas indagações parecem não ter conexão com o tema aqui tratado, mas se examinadas com atenção, podem nos indicar a variedade e a complexidade da experiência humana, algo que não se reduz ao economicismo anti-globalização.
O fenômeno da globalização tem sido interpretado única e exclusivamente como a expansão do capitalismo financeiro e, ainda que seja impossível negar o domínio cada vez mais abrangente das corporações no controle da economia e a concentração do capital, o que, diga-se de passagem, está na contramão da competição, do empreendedorismo, da livre iniciativa e do respeito às leis, elementos fundantes do capitalismo, não se pode desprezar o componente cultural que envolve a questão. Os analistas que citei anteriormente não hesitam minimamente em considerar que a globalização homogeiniza as culturas, mas se, tomando um exemplo, a tecnologia que conheceu avanço inigualável com a revolução tecno-cientifica, aspecto da própria globalização, permite que manifestações culturais advindas dos mais remotos cantões do planeta sejam conhecidas por boa parte das pessoas, onde quer que elas estejam, se ainda, num nível mais pragmático, o comércio livre entre nações possibilita troca de mercadorias típicas, essas também um dado cultural, então não se tem aí um lado culturalmente heterogeneizante da globalização? Um quarteto de cordas tailandês tocando em território suiço, o Cirque du Soleil, surgido no Canadá, se apresentando mundo afora, a presença do Museu para Arte Africana em Nova York, são apenas alguns exemplos de que a globalização não é tão niveladora de diversidades como querem alguns.
Assim como o aspecto heterogêneo do mundo de hoje pode ser observado em termos culturais, também a análise de certos fenômenos requer caráter de especificidade. Muitos daqueles que dirigem seus esforços para denunciar uma suposta homogeinização cultural fruto da globalização, condicionam suas próprias análises a uma homogeneidade intelectual. A socióloga norteamericana, Saskia Sassen, mais uma que bem pode entrar para o rol dos “oeconomia rebus tantum”, chegou a afirmar que as manifestações inglesas são comparáveis aos protestos observados nos países do Oriente Médio, levadas a cabo por pessoas exclusas pela globalização e pelo clamor de "voz política". Se ela buscasse explicações livres de abstração, estaria preservada de cometer tamanha impropriedade. No Oriente Médio havia uma claríssima agenda política pró-democrática motivada por regimes ditatoriais em total descompasso com a modernidade. Os manifestantes, em sua maioria, eram jovens fazendo uso de tecnologias cujo acesso lhes foi proporcionado pela globalização. O que a censura de déspotas arcaístas, anti-ocidentais e anti-globalização lhes negava, eles foram buscar naquilo mesmo que os ocidentais de esquerda, a exemplo da dra. Sassen, demonizam. Quanto à onda de violência nas periferias inglesas, não foi obra de pobres excluídos pela globalização, mas sim de criminosos enfrentando a polícia, como muitas vezes já ocorreu em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Não foram manifestações de gente excluída, mas de quem busca se incluir paralelamente, na clandestinidade. Se, como Aristóteles já destacava desde o século IV a. C., política tem a ver com debate, argumentação e participação pública, características que preveem inserção regrada, fica difícil defender que ações como a da última semana possam desejar algo dentro desse contexto. O que é paralelo e clandestino, ainda que possa ser clamoroso em certo sentido, não pode, indubitavelmente, ser entendido como político. É uma situação que levanta críticas bastante justas, já que faz atentar para a ausência do poder público britânico, no entanto, se define como uma questão de falta de assistência social localizada, muito mais do que de processos globalizantes mundiais, muito mais antropológica e sociológica, do que econômica. Mark Duggan era traficante de drogas, não reivindicava a qualidade de agente político, não procurava agir como cidadão. Nas palavras de um morador de Tottenham: “ninguém aqui precisa de emprego para ganhar dinheiro, todos sabem como o tráfico traz rendimento". Fosse alguém falar de globalização com esses caras, eles mandariam o interlocutor arrumar o que fazer. Fosse transmitir a eles a necessidade de agir dentro da lei, ou de estudar e buscar oportunidades, ou ainda de lutar política e civilizadamente por elas, estaria o mesmo interlocutor correndo risco...
Edgar Morin, filósofo bem mais sofisticado do que os apocalípticos do Ocidente e do capitalismo, ainda que um crítico de muitos dos problemas atuais, defende que a compartimentação do conhecimento turva o olhar e impede uma correta compreensão da esfera contemporânea. É uma postura que serve de alerta para o economicismo anti-globalização, incapaz de interpretar questões humanas a partir de um viés antropológico e ligado à interioridade, como o fizeram os filósofos cujas citações abrem este artigo. Todavia, mais do que a interdisciplinaridade proposta por Morin, às vezes ela mesma causadora de confusões, creio que o mais indicado ao invés do ideologismo economicista, é a análise dos fenômenos baseada nas disciplinas que sejam pertinentes a eles mesmos.
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