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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Algumas considerações sobre a queda de Kadafi


Com a queda do regime ditatorial de Muamar Kadafi na Líbia praticamente consolidado, tenho observado algumas perspectivas nem tão otimistas em relação ao futuro do país. Isso se deve, da mesma maneira como ocorre com outras nações do mundo árabe que passaram por recentes derrubadas de governos autoritários, em função da incerteza quanto ao desenvolvimento de sistemas democráticos em substituição às ditaduras postas ao chão. Realmente, para que uma democracia se estabeleça é necessário haver tempo de maturação da ideia e da cultura democráticas, condição que só pode advir do âmago dos indivíduos e da sociedade. Nesse sentido, é bastante difícil arriscar qualquer avaliação estrutural ou mesmo conjuntural sobre o futuro desses países. Some-se a isso, no caso líbio, a fragmentação política tribal, a possibilidade de emergência de radicalismos islâmicos e a questão do petróleo para que esteja em total suspense o que virá daqui para frente.
A despeito dessa situação incerta, entretanto, creio que certos aspectos positivos envolvidos no fim do governo de um ditador que estava há quarenta e dois no poder não podem ser negligenciados. Vamos a eles:

1. Como todo ditador, Kadafi necessitava criar e recriar continuamente uma falsa realidade para se manter no poder. Ele conseguiu iludir a população líbia por décadas, mas chegou um momento em que a fratura entre a realidade concreta e a ilusória, fruto da mente diabólica do tirano, assumiu nitidez tão forte que não pôde mais ser mascarada. Até momentos derradeiros antes de sua queda, Kadafi acreditou que o povo líbio o amava, paranoia de uma criatura que acaba vendo o feitiço do poder mantido às custas do medo e da enganação, se virar contra o feiticeiro. A loucura de um tirano é o sinal mais claro da decadência de seu regime, tornado incapaz de continuar mantendo a farsa que o sustenta.

2. A liberdade é um valor universal, o maior que um ser humano pode aspirar, algo que, mais cedo ou mais tarde, sempre irá bater à porta daqueles que se encontram sob o domínio de ditaduras. Quando a maioria de um povo sai às ruas lutando para ser livre, não há regime autoritário que possa se manter. Essa é uma lição simples, mas nada perceptível para homens como Kadafi, alucinados pelo culto à própria personalidade.

3. Ainda que os tribalismos vigentes na Líbia não devam ser descartados como fator de forte complicação para a viabilidade do futuro governo no país, não se pode esquecer também que a aversão a Kadafi se tornou um significativo vetor de união dos rebeldes, elemento que poderá fazer com que as tribos fiquem bem mais atentas em relação à necessidade da virtude política ao invés de permanecerem imersas no atoleiro das disputas tribais. A opção por uma postura política pautada por diálogo e coalizão em detrimento do ódio etnocultural é válida não só para a Líbia, mas para grande parte da África, condição fundamental para que o continente possa dar passos na direção contrária do estado em que ora se encontra.

4. A vitória dos rebeldes e o fim da ditadura de Kadafi, também aqui como já havia acontecido no Egito e na Tunísia, indicam de modo claro que a luta por uma causa justa deve obrigatoriamente estar imbuída de caráter político, manifestada através da ação civil e direcionada de modo inequívoco contra o foco da opressão. Ações terroristas não podem e não devem ganhar apoio de uma maioria, pois apenas contribuem para que uma possível justeza de propósitos se veja completamente exaurida de razão face à violência inadvertida que produz vítimas furtiva e indistintamente. Se a criação do estado Palestino se reveste de todas as justificativas, o fato da questão estar entregue a grupos terroristas como o Hamas, não só invalida a reivindicação, mas prejudica a própria causa, justa em essência.

5. Como afirmou o geógrafo Demétrio Magnoli, a intervenção militar do Ocidente na Líbia foi necessária e positiva, já que ajudou os rebeldes e enfraqueceu a desmedida resistência da minoria leal a Kadafi, mantida, sem dúvida, por força de coerção, chantagem e medo. Quem terá a coragem de reconhecer isso? Certamente não serão aqueles, ditos de esquerda, que nutrem simpatia por regimes como o de Kadafi. Chega a ser inacreditável que tantos ideólogos, até hoje, ainda não tenham percebido que em se tratando de ditaduras a forma está acima do conteúdo ideológico. Ditaduras são execráveis independentemente das orientações políticas que lhes conteudizam.

6. As revoluções democráticas do mundo árabe têm tido sucesso em seu objetivo imediato, a derrubada de tiranos há décadas no poder e o fim das brutais ditaduras. Iêmen, Irã e Síria são basicamente os últimos bastiões de tirania no Oriente Médio, sendo que nesse último, a figura sinistra de Bashar Al Assad vem cometendo crimes odiosos contra a população que clama por liberdade. Se estou certo no que penso, ele não poderá resistir indefinidamente. Se mais uma ditadura vier a ruir, tanto melhor para os sírios e para o mundo, fato que já deveria ter levado países europeus a impor sanções ao petróleo de Assad.  Enfraquecê-lo é contribuir com o fim do banho de sangue e com a causa da liberdade.

Concluo admitindo que talvez esteja muito otimista e empolgado diante da queda de regimes autoritários e tirânicos que reputo entre as coisas mais abomináveis a fazer parte da história humana. Por mais que se deseje pensar o contrário e por mais que se torça pela liberdade, é forçoso ter que considerar a possibilidade de insucesso e no fim das contas, corre-se o risco da frustração perante uma troca de seis por meia dúzia, isto é, a substituição de uma tirania por outra. O ofício de historiador recomenda prudência e espera paciente pelo suceder dos acontecimentos, sujeito sabe-se lá a quais meandros, mas mesmo assim, não tenho como deixar de sentir apreço considerável - como já foi com as quedas de Saddam e Mubarak - diante do fim de criaturas iguais a Kadafi.

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