Quando alguém faz a pergunta “para que serve a história?”, um questionamento até certo ponto banal, embora justo, a melhor resposta sempre será aquela que é dada por meio de exemplos, esclarecendo o que, dito de outro modo, com base na teoria e portanto mais sujeito a hermetismos, correria o risco de ser considerado deveras abstrato por parte do inquiridor. A qual exemplo recorrer vai do gosto, do acaso ou do conhecimento de quem responde, sendo o mais importante salientar a carga de passado que o presente pode comportar. Para se compreender o contexto presente é imprenscindível conhecer os caminhos trilhados por uma sociedade, caminhos esses que, por sua especificidade, contribuíram para estabelecer um determinado presente, e não outro.
Nas sociedades tradicionais, entendidas em âmbito sociológico¹, isto é, nas quais ainda preponderam o patriarcalismo, o familismo e as relações pessoais, mesmo na esfera pública, é fácil sentir e observar uma carga de passado que, não pode deixar de se apontar, resulta em traços bastante negativos. Não é necessário ter senso lá muito aguçado para classificar o Brasil dentre as sociedades desse tipo, isso não somente em localidades distantes dos grandes centros urbanos, mas inclusive neles. A indistinção entre público e privado é uma marca sui generis da sociedade brasileira, tributária do passado de colonização ibérica. Não posso deixar de concordar com a professora Lucília Siqueira, quando esta afirma que não podemos mais considerar a estrutura colonial lusitana como responsável por nossas mazelas atuais, afinal, a Independência, a República, a industrialização e a democratização são realidades que, bem ou mal, capengas como se apresentaram ou ainda se apresentam, fizeram ou fazem parte da história do Brasil, tornando-o uma realidade diferente em relação ao que foi até 1808. Isso não quer dizer que seja possível descartar os efeitos da longa duração e dos traços culturais e mentais que se fazem perdurar no povo brasileiro, algo que a professora Lucília, arguta como sempre se mostrou, também sabe perfeitamente.
Os sinais e pormenores que definem a confusão entre público e privado no Brasil se reproduzem todos os dias nas relações entre patrões e empregados, na esfera da política oficial, nas escolas e universidades, no trânsito, nas conversas entre amigos e até entre pessoas desconhecidas, situação em que o trato familista configura um paradoxo dos mais incríveis. Tudo isso revela que o Brasil está a anos luz de distância de ser um país liberal, coisa que muita gente não pode e nem quer perceber.
Aqui tendo chegado, noto que talvez eu feito uma digressão muito longa, desviando-me do tema sugerido pelo título, mas creio também, que o leitor poderá entender os motivos deste trajeto. A crítica no Brasil, ao contrário do que deveria ser, ainda é assunto tratado sob espesso véu de familismo e personalismo. No geral, o brasileiro tem ojeriza à crítica, logo tomando-a por um ataque pessoal, seja por parte do próprio alvo criticado ou, o que é comum, por parte de quem toma suas dores. A noção de que a crítica, quando bem feita, se fundamenta em ideias, é estranha ao povo que habita estas terras. Desde Platão na Antiguidade, passando pela contribuição de importantes pensadores medievais e modernos, vide um São Tomás de Aquino ou até um Hegel expurgado de marxismo, é sabido que o conceito de ideia demanda impessoalidade, algo que, no entanto, não tem logrado sucesso face à mentalidade tradicionalista do brasileiro. Daí ser tão recorrente que as réplicas se percam completamente em argumentação ad hominem, o que faz a discussão se tornar pobre e arredia ao debate.
Na esteira do anticriticismo, muitas vezes vem à tona a questão da verdade, o que é fruto da suposição, também ela resultado do tradicionalismo, de que toda crítica esteja presa ao dualismo verdadeiro-falso. Este ponto é muito espinhoso quando a crítica se refere a assuntos referentes às Ciências Humanas, terreno cujo estatuto epistemológico é bastante específico. Em áreas do saber nas quais se lida muito mais com probabilidade e verossimilhança, uma argumentação pautada pela oposição entre verdadeiro-falso estará sempre comprometida. Nesses casos, deve se considerar, além do elemento subjetivo adjacente ao discurso das Humanidades, a noção de que uma concepção geral que norteia as ideias de determinado pensador pode, na maioria das vezes, não ser de sua própria autoria. Disto decorre que uma possível crítica dirigida a esse mesmo pensador não busca colocar em discussão se ele é ou não o dono da verdade, pretensão pouco aplicável em Humanas ou mesmo à crítica em si, mas sim chamar atenção para pressupostos teóricos e ideológicos equivocados que podem comprometer uma argumentação, ainda que formalmente bem construída. Evidentemente, o erro e o acerto estão em jogo, mas não em uma perspectiva totalizante, que inclusive esvaziaria em grande medida o propósito da crítica.
Penso ser correto admitir que quando uma sociedade atinge um nível sofisticado de crítica, livre de personalismos, tem-se aí um sinal de seu desenvolvimento mental e cultural, quadro que, pelo exposto, ainda não começou nem mesmo a engatinhar no Brasil, país de claro tradicionalismo sociológico.
NOTA
1. O conceito de “sociedades tradicionais” em Sociologia, muito utilizado pela Escola de Chicago e presente nas obras de Talcott Parsons e Gino Germani, refere-se, grosso modo, a sociedades permeadas por valores oligárquicos, tais como exemplificados no texto. Este conceito não deve ser confundido com sua definição antropológica, usada para caracterizar sociedades pré-históricas ou pré-modernas, (em sentido lato) remotíssimas, nômades/semi-nômades, formadas por caçadores e coletores. Tem ainda menos a ver com o conservadorismo humanista à la Irving Babbitt, cujo princípio é a valorização de padrões morais e filosóficos que tendem a favorecer a vida civilizada e a liberdade autêntica.
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