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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A construção da liberdade


O argumento do livre-arbítrio é sempre um dos mais utilizados quando se quer defender a existência divina. De acordo com essa ideia, o ser humano é livre para decidir entre o bem e o mal, o certo e o errado, juízos que dependem da presença ou da ausência de fé. Assim, o que determina que as escolhas sejam corretas é o simples endosso de Deus, isto é, a crença na entidade divina encaminha para o bem, o seu contrário, a descrença, implica em decisões equivocadas. É uma noção extremamente pobre de liberdade, pois admite que as escolhas sejam puras, independentes de qualquer fator baseado na existência concreta das pessoas, como se a metafísica que envolve as questões de fé pudesse varrer por completo todos os condicionamentos que se impõem sobre nós e que tornam as escolhas bem mais complexas do que leva a pensar o tema do livre arbítrio. Nesse argumento não há espaço para entender a liberdade como um processo interior de construção, pois ser livre não vai além da dualidade ter ou não ter fé, algo que vem antes da interioridade e dela não se diferencia.
Dentre tantas indagações relacionadas com esta discussão, seria pertinente, por exemplo, perguntar porque Hitler conseguiu chegar ao poder na Alemanha. Certamente, a opção pelo totalitarismo nazista obedeceu a uma série de fatores coligados com a experiêcia coletiva e individual dos alemães que em nada pode ser reduzida a decisões advindas da crença em Deus, ou então, estaríamos forçados a concluir que uma boa parte da sociedade alemã se desviou dos caminhos da fé e, devido a isso, fez a escolha errada. Não seria mais prudente que Deus não nos permitisse a hipótese de negar a fé, impossibilitando escolhas de consequências trágicas?
Nietzsche proclamou a morte de Deus e foi tocado por uma certa percepção ao constatar que as escolhas não dependem de uma moral estabelecida teologicamente, mas sim da vontade humana. O ato volitivo, concreto e permeado de condicionamentos tanto de longo prazo, tais quais a bagagem genética, a história de vida, o contexto sociocultural e as próprias ideias, inclusive religiosas, como também os de médio e curto prazo, aqueles emanados do discurso, da propaganda e da influência da persuasão, elementos que podem contribuir acentuadamente com a mudança dos nossos próprios pontos de vista, é crucial na determinação das escolhas humanas. Ao observar que essas mesmas escolhas dependem de fatores advindos da existência e da experiência, Nietzsche no entanto, não prosseguiu em suas especulações e foi incapaz de apontar aquilo que origina e direciona a volição para um ou outro caminho. Ao eleger a vontade como princípio norteador e dar a ela poder absoluto, o filósofo de Röcken promoveu a eliminação não apenas da moral religiosa, mas da própria moral filosófica como propiciadora de conhecimento do eu interior. Estava cortado o nó górdio de um estilo de pensamento destrutivo, que aprisiona o indivíduo aos desejos impulsivos, sem fornecer antídoto ao conflito permanente com a realidade, que inevitavelmente é o fruto colhido por quem não se impõe mecanismos internos de controle. Trata-se, não por mero acaso, de um problema que atormenta enorme contingente de pessoas na pós-modernidade. Da mesma maneira que descartar a vida e a experiência, característica inerente ao argumento do livre arbítrio, não faz restar lugar para o conhecimento, proclamar a vontade como se ela não demandasse antes um tête à tête do homem com o mundo que o cerca, acarreta em irresponsabilidade face às escolhas, muitas vezes impossibilitadas de serem entendidas como escolhas.
O que a moral cristã enuncia adotando um conceito metafísico de liberdade, externo ao eu, somente oferecido ao indivíduo como graça divina, sem portanto conferir autonomia cognitiva, e que Nietzsche desmistifica sem o substituir por uma ideia capaz de lidar responsavelmente com a experiência e com a realidade, é exatamente o que o humanismo consegue propor de forma concreta e plenamente realizável. Se é certo que nossas escolhas são determinadas pela vontade, é preciso descobrir porque essa vontade age de modos diferentes e leva também a consequências múltiplas. Em última istância, ela é regida pela imaginação, cujo âmbito envolve percepção, discriminação e concepção, os três processos fundamentais da imaginação racional, sóbria e compenetrada, único entendimento que permite ao indivíduo conhecer sua interioridade e estar capacitado a construir a liberdade, que não pode ser outra coisa senão o autocontrole, o frein vital. Ser livre é conceber nosso lugar no universo, reconhecer nossos defeitos e limitações, exercer nossos direitos e deveres respeitando as criaturas que compartilham conosco a vida neste cosmos. É ainda renunciar aos desejos expansivos e destrutivos, tarefa só alcancável se estivermos sempre dispostos a buscar o conhecimento de nossa interioridade, conhecimento este que é também o princípio da felicidade, uma vez que é aquele que nos faz testemunhar nossos próprios atos, sem aferição externa e, portanto, base da ética. Não existe liberdade antes do conhecimento, tampouco volição que deva permanecer isenta do dever de autocontrole.
O  grande crítico e historiador Aby Warburg afirmou que Deus está no particular, ideia que posso aceitar perfeitamente se com isso se fizer entender que o ser humano possui uma interioridade na qual indícios podem e devem ser buscados por meio do conhecimento, até que se atinja uma imaginação completa e o exercício do autocontrole. É possível que essa capacidade tenha nos sido dada como graça divina, mas a partir daí, não cabe esperar que Deus seja sujeito do conhecimento e da liberdade que cabe a nós construir e realizar nessa vida e nesse universo. Para finalizar, nada mais cabível do que a máxima de André Comte-Sponville, segundo a qual ninguém nasce livre, torna-se livre.

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