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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O povo em catarse: um dos efeitos da cordialidade no Brasil das massas


Certa vez, num livro de entrevistas, a historiadora Emília Viotti da Costa afirmou sempre ter duvidado da existência de uma mentalidade nacional, comum a diferentes classes e grupos em um país tão diverso como o Brasil. Assim, ela fez sua crítica ao conceito de “homem cordial”, formulado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Equivocou-se a historiadora. Equivocou-se, pois não foi capaz de enxergar que em sociedades de massa, a tendência é justamente o afloramento do que é mais típico de uma mentalidade.
Na década de 1930, quando da publicação da obra norteadora sobre a formação do Brasil, o país consolidava-se como nação, pleiteava, ao menos formalmente, uma colocação dentre as nações modernas e, se assim pudermos chamar, tornava-se um país de massas. Buarque de Holanda, arguto como sempre, viu nesse novo Brasil a emergência da cordialidade como traço mais profundo e mais definidor da mente do brasileiro comum. Advinda historicamente da maneira como fora colonizado o país, a cordialidade encontrou na era Vargas a confluência ideal de fatores humanos para seu estabelecimento definitivo. A cordialidade, se bem entendida, consiste em patrimônio imaterial da cultura brasileira, com todo sarcasmo que isso implica.
A atual conjuntura vivida pelo Brasil, governado por Lula, demarca nitidamente a cordialidade como elemento característico da forma de pensar de nosso povo. Um dos desdobramentos mais evidentes da cordialidade é a comoção gerada por eventos festivos que supostamente conferem à nação um ar de importância e engrandecimento. Ufanismo. Virou moda, de uns meses para cá mais do que nunca, gritar aos quatro ventos que o status alcançado pelo Brasil junto a chefes de Estado e à opinião pública no exterior atingiu níveis altaneiros. O Brasil é o país do momento! Lula é o cara, segundo Barack Obama. O verdeamarelismo se deleita em seu mais intenso orgasmo. Quem acha que não, quem não vê nisso nada mais do que cordialidade ufanista é, segundo o festivo presidente brasileiro, chato, ranzinza e do contra. Vários brasileiros, imersos na euforia e no sambinha de Copacabana, concordam. Não lhes ocorre que a atitude blasé diante do otimismo infundado possa estar embasada em análise fria e racional, distante do picadeiro no qual a cordialidade hipnotiza os incautos.
Em boa parte, a festinha verde e amarela se deve ao fato do Rio de Janeiro ter sido escolhido como sede das Olimpíadas em 2016. Some-se a isso, o outro evento esportivo, a Copa do Mundo do Brasil em 2014. Olimpíadas e Copa do Mundo, eventos efêmeros que durarão um mês, o suficiente para a alegria do povo, o suficiente para quase tornar completo o set list da esbórnia coletiva. Acríticas e seduzidas pela propaganda governamental, característica de governos autoritários, as massas se esqueceram rapidinho do legado do Pan-2007, no qual o dinheiro público foi gasto a rodo, sem que as instalações pudessem deixar legado algum, sequer para a população do próprio Rio de Janeiro. Não vai mudar na Copa, nem nas Olimpíadas, a menos que se crie um comitê civil totalmente independente para fiscalizar os gastos. Mas quem vai pensar nisso enquanto estiver anestesiado pela catarse do verdeamarelismo? Não há, nem de longe no Brasil, cultura democrática suficiente para tal ato. Além disso, os interesses políticos obviamente não permitiriam uma tal ingerência democrática em seus negócios. Seria de um liberalismo político impensável num regime centralizador. O método mais correto, no entanto, seria fazer com que a verba para a construção das instalações necessárias viesse da iniciativa privada. Por razões elementares de cunho ideológico, algo do tipo não é nem sonhado pelo governo, tampouco atenderia aos tais interesses políticos.
Cabe ainda deixar claro que o desenvolvimento de um país nada tem a ver com eventos esportivos que nele se realizem. Não é preciso Copa do Mundo ou Olimpíadas para serem feitas as urgentes melhorias e reformas que o Brasil requer, elas sim geradoras de desenvolvimento. Só que as mesmas não conferem votos, são de efeito a médio e longo prazo, enquanto os eventos esportivos apresentam fachada deslumbrante e destilam o mesmo poder de sedução que faz o barqueiro naufragar perante o canto da sereia. A cordialidade incapacita o povo festivo de enxergar a política do pão e circo por trás desse contexto. Só uma pergunta: diante da falência completa do futebol nas três regiões mais pobres do país, onde os clubes estão endividados até os cotovelos, onde os estádios na maior parte das ocasiões permanecem vazios, o que será feito dos elefantes brancos que estão sendo construídos com dinheiro público para a Copa após o evento? Se alguém tiver ideia, comente, por favor.
Deixando de lado os acontecimentos de fachada e buscando fatores de análise que, por seu caráter mais técnico, não se colocam no horizonte das massas em catarse, torna-se inconteste a falácia da bonança tupiniquim. No que tange ao comércio mundial, a participação do Brasil considerando todos os setores da economia, fica em torno de 2%. Índice risível, que só não é mais baixo por conta do agronegócio. Ora, um país desenvolvido não pode depender apenas do setor primário, além disso, como o Brasil investe pouco em pesquisa de meio ambiente, os efeitos do agronegócio sobre a natureza são pouco debatidos e as possibilidades de atenuá-los estão distantes. Se o Programa Nacional de Direitos Humanos do governo petista for aprovado no Congresso, então até mesmo o agronegócio estará seriamente ameaçado. No setor industrial, o Brasil vem perdendo fatias de mercado, já que os investimentos em tecnologia e logística são parcos, bem como a corrupção sistemática e a carga tributária exacerbada constituem-se em fortíssimos entraves à produção. Finalmente, o terciário pouco qualificado em face de uma educação falida, nada representa em termos práticos sobre a participação brasileira no comércio mundial.
Levando em conta outros aspectos importantes que perfazem o cálculo do IDH, os índices do país se mostram igualmente bem aquém do desejável. É assim com a educação, com a saúde e com a renda per capita. Nesse último quesito, o assistencialismo petista enforca a classe média, a mais produtiva do país, com uma quantidade imensa de impostos e transfere a renda aos mais pobres, sem que isso evidentemente os tire da pobreza e lhes permita acesso a oportunidades.
Há motivos para acreditar que o Brasil é o país do momento? Só entre quem é dominado pelo ufanismo cordial. Há quem sempre vá se lembrar das palavras elogiosas de Obama em relação a Lula, ou que vá ainda mencionar a eleição do presidente festivo como personalidade do ano por jornais da França e da Espanha. Mero joguete diplomático, especialmente em relação à França, que está prestes a vender aviões de caça ultrapassados ao Brasil. Lula vai salvar a Dassault da falência, a fabricante dos jatos. Já de minha parte, eu veria com bons olhos se algum pesquisador brasileiro tivesse faturado um Nobel, mas devo me lembrar sempre que pesquisa e ciência não são coisas afeitas à cordialidade. Nenhum, entre os brasileiros típicos, valorizaria devidamente um conterrâneo ganhador de Nobel. É a cara do Brasil...

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Apologia da razão


“Tenho o hábito de me considerar um racionalista; e um racionalista, suponho, deve ser alguém que deseja que os homens sejam racionais. Mas nos dias de hoje a racionalidade recebeu muitos golpes duros e, por isso, é difícil saber o que os seres humanos possam alcançar. A questão da definição da racionalidade possui dois lados, o teórico e o prático: o que é uma opinião racional? O que é uma conduta racional? O pragmatismo enfatiza a opinião irracional, e a psicanálise enfatiza a conduta irracional. Ambos levaram as pessoas a perceber que não existe um ideal de racionalidade com o qual a opinião e a conduta possam estar em conformidade de forma vantajosa. A consequência parece ser que, se eu e você tivermos opiniões diferentes, é inútil apelar para o argumento, ou buscar a arbitragem de uma terceira pessoa imparcial; não há nada que possamos disputar pelos métodos da retórica, da propaganda ou da guerra, segundo o grau de nossas forças financeiras e militares. Acredito que essa perspectiva seja bastante perigosa e, a longo prazo, fatal para a civilização.”
Foi com tais palavras que Bertrand Russell iniciou o ensaio “Pode o homem ser racional?”, escrito na década de 1920. Hoje, passados cerca de 85 anos desde então, há motivos de sobra para considerar que os tantos “golpes duros” sofridos pela racionalidade tenham aumentado exponencialmente em relação à época em que o filósofo inglês redigiu seu texto. Depois dos frankfurtianos e da escola pós moderna, que  parece ter dado seus primeiros passos ainda no século XIX, por meio de nomes como Nietzsche e Bergson, passando pelos inúmeros profetas da decadência do Ocidente no século XX, o irracionalismo abraça vorazmente tudo a seu alcance, cada vez mais. A picaretagem conquistou o mundo, segundo o dito de Francis Wheen, um racionalista que de resto, é marxista demais para o meu gosto.
Se alguma vez um pensador genuinamente iluminista do século XVIII afirmou ipsis litteris que acreditava no Progresso, com “P” maiúsculo, linear e constante, hoje é certo que ninguém mais advoga tal pensamento. Qualquer estudante de Ensino Médio com um mínimo de senso histórico pode notar que isso é falacioso. Se fosse esta a ideia a mover tantos ataques contra a razão, os racionalistas não precisariam estar preocupados, embora ainda possa haver um certo número de ingênuos ou preguiçosos intelectualmente que estabeleçam sua contrariedade ao racionalismo a partir desse viés. Na verdade, a dúvida desdenhosa em relação ao potencial libertador da razão encontra sua tese em interpretações equivocadas, tanto no que tange à própria filosofia racionalista, incluindo aí a aposta nos benefícios da ciência, como também em campos do conhecimento surgidos no século XX, tais como a psicanálise e a linguística.
É óbvio que nenhum racionalista defende o ponto de vista de que o homem possa atingir um grau de razão em cem por cento. Se não fosse o absurdo que isso já parece pressupor logo de cara, seria possível recorrer àquilo que muitas filosofias orientais (o exemplo é proposital...) ensinam há milênios, a saber, que o homem é imperfeito. O lado irracional da mente é inerente ao ser humano, o que o racionalismo propõe, são métodos para se lidar com esse aspecto, de modo a tentar atenuá-lo. Quando somos postos a pensar apenas  por alguns segundos, fica fácil observar que em nossas ações do cotidiano, que ocupam uma quantidade bastante significativa do tempo, nos orientamos com base nos signos da razão. Se você encontra um vazamento na pia de sua cozinha, irá buscar primeiramente contê-lo; tão logo tenha feito isso, o próximo passo será identificar a causa do problema, para então solucioná-lo a partir das técnicas conhecidas. Quando vamos preparar uma macarronada, uma lógica deve obrigatoriamente ser seguida, desde o tamanho do caldeirão a ser usado, passando pela fervura da água e acréscimo dos temperos, até a retirada do cozimento no ponto certo, para finalmente juntar ao macarrão, o molho e o queijo. Se os passos não forem obedecidos na ordem correta, lógica e racionalmente, certamente a fome terá que ser saciada com uma massaroca indigesta. Exemplos básicos do dia-a-dia em que a razão é fundamental. Poder-se-ia objetar essa argumentação dizendo que a vivência e a inter-relação entre as pessoas envolvem fatores de ordem muito mais complexa, nos quais a objetividade empregada nos exemplos anteriores acaba por não existir. Claramente isso é verdade, mas antes de considerar a objeção, cabe perceber, seguindo o próprio Russell, que “um grande defeito dos filósofos é preferir os grandes exemplos do que aqueles que se passam em nossa vida comum e no cotidiano”.  Uma vez mais fazendo valer a reflexão de Russell, é dever reconhecer que o pragmatismo subjetivista teve o mérito de notar que as crenças humanas são vagas e complexas, não apontam para fatos precisos e unívocos, mas para diversas regiões de fatos vagos e díspares. Tais crenças, portanto, ao contrário das proposições esquemáticas da lógica, não são opostos definidos como verdadeiro ou falso, mas sim uma névoa imprecisa de verdade e falsidade; possuem tons variados de cinza, nunca pretos ou brancos. Dessa forma, uma vez feito jus às descobertas importantes do pragmatismo, o problema é confundir crença com verdade, eximindo-se da busca científica e filosófica pela aproximação possível da verdade, corrigindo, ao menos em parte, a distorção provocada pelas opiniões humanas, permeadas por grande dose de paixão. Essa seria, a meu ver, a função das ciências humanas. Ainda voltarei a isso. Quando a ideia simplista de que tudo é opinião satisfaz um intelecto indolente, é impossível proceder a um ajuste amigável das diferenças. Acaso não seriam as guerras e os totalitarismos do século XX, frutos justamente dessa forma de pensar e agir, ao contrário do que tentam transmitir os irracionalistas, afirmando que a razão e a ciência conduziram a humanidade ao estágio atual? Conferir peso exagerado à subjetividade, seria, mutatis mutandis, incorrer no mesmo erro de um pseudo racionalista, que nada enxerga além de uma objetividade que só existe a seus próprios olhos.
A ciência é um dos alvos de ataque preferidos do irracionalismo. Os obscurantistas, como comecei a destacar já no parágrafo anterior, afirmam que o sonho de um futuro paradisíaco apregoado pelos racionalistas a partir da ciência, não passou de uma grande quimera, dado as catástrofes observadas em escala cada vez maior a partir do ano de 1914. Primeiramente, nenhum racionalista sério defendeu alguma vez que tenha sido, que a ciência, por si só, levaria o homem à felicidade plena. Aliás, essa meta parece cair como uma luva em várias filosofias narcisistas pós modernas. Um racionalista sabe bem que felicidade, em seu estágio consumado, é algo interno, produto de um trabalho mental-filosófico e individual, não mantendo relação com fatores externos, como a ciência. Em segundo lugar, a ciência é impessoal e amoral, suas descobertas intrínsecas não estão preocupadas com a aplicação de seus resultados. A ciência não é um deus que escolhe suas ações. A ciência se faz e se desenvolve a partir de métodos racionais, não indo além disso. O uso que dela se faz, é preciso entender, trata-se de uma questão humana, sujeita aos desmandos e paixões da subjetividade; nada garante que, por ser a ciência racional no que se refere aos seus métodos, seja racional também em suas aplicações. A ciência é uma criação humana e, quando utilizada para o bem, não há dúvida de que melhora acentuadamente e a cada minuto a vida das pessoas. De outro modo, quando mal utilizada, gerou e ainda gera prejuízos imensos. Quem faz a escolha não é a ciência, é o homem. O pragmatismo é incapaz de condenar aquilo que ele próprio critica, pois fica preso em sua armadilha. Como desaprovar escolhas se a argumentação racional jamais pode prevalecer sobre o nevoeiro das opiniões e das crenças?
Muitos pensadores pós modernos consideram que a psicanálise foi um campo do saber responsável por impor ao racionalismo uma derrota da qual ele jamais poderia se recuperar. A meu ver, essa ideia resulta de uma noção errônea sobre a psicanálise e sobre a filosofia racionalista. O racionalismo jamais desconsiderou a existência e a importância da dimensão irracional da mente humana. Se fosse o contrário, não haveria nenhum motivo para a busca da razão, já que ela não se faria necessária diante da inexistência de seu oposto. Exatamente por enxergar o irracional, a filosofia racionalista deseja que os homens sejam racionais, pelo menos, tanto quanto possível, para modificarmos um pouco a formulação de Russell. Não é diferente com a psicanálise. Quando Freud descobriu e analisou as pulsões destrutivas do homem, não pretendeu com isso transmitir a ideia de que fosse impossível se libertar desses fantasmas da mente. O que é a psicanálise senão a tentativa, racional, diga-se de passagem, de fornecer um antídoto contra as pulsões? Desde Freud, vários meios, psicológicos ou filosóficos, foram expostos e praticados na tentativa de lidar com a questão da perda da satisfação total. Há bons motivos para acreditar que os meios racionais são os mais bens sucedidos nessa empreitada. Álcool e drogas, por exemplo, são tentativas irracionais de se lidar com as agruras da mente. Irracionais porque os resultados são paliativos, isolam as pessoas, tornando cada vez mais difícil a convivência social e a manutenção de laços afetivos de amor ou amizade; contribuem apenas para um maior autocentramento, o que sabidamente agrava ainda mais distúrbios psíquicos como depressão e síndrome do pânico. Nesse sentido, as filosofias pós modernas são igualmente prejudiciais em relação às doenças típicas da contemporaneidade, uma vez que o hedonismo, traço marcante dessas vias de pensamento, ao superstimar a subjetividade, confere grande margem para o egoísmo, porta de entrada a muitos males da mente.
No campo da linguística, tem-se ao que parece, a maneira mais fácil de comprovar que os ataques do pós modernismo à razão constituem nada mais do que uma tentativa desesperada de justificar o impossível, ou seja, aquilo mesmo que a lógica e os argumentos desmistificam. Tornou-se comum ao longo do século XX o surgimento de filosofias e pensadores que, com base na interpretação dos signos da linguagem, ramo conhecido como semiótica, defenderam que qualquer tentativa de se chegar à verdade, ou mesmo de busca por probabilidade que possa tornar uma conclusão aceitável, esbarra impreterivelmente na textualidade e na subjetividade do autor do texto. Sendo assim, toda forma de apresentação de conclusões, descobertas, análises, ou seja lá o que for que se proponha a defender alguma ideia, é um discurso de poder, viciado pelo ponto de vista do autor. Essa ênfase na textualidade, logo de cara, descarta o fator ético como critério de validação de conclusões. Qualquer cientista sério deve ter compromisso com a verdade, mesmo que não chegue a ela, o fracasso nunca pode ser deliberado. Ainda que isso não bastasse e os pós modernos afirmassem que, mesmo preservando a ética, a subjetividade inconsciente impossibilite a descoberta de qualquer verdade ou probabilidade imparcial, há que se considerar que a aferição de uma conclusão é externa ao sujeito que a oferece. A experiência e a confrontação de descobertas e interpretações múltiplas pode sim, sem dúvida, tornar conclusões válidas, ou na pior das hipóteses, pode fazer com que uma boa dose de probabilidade praticamente seja capaz de desfazer hesitações. Como bem coloca o historiador Carlo Ginzburg ao pensar na pesquisa histórica especificamente, (ou nas Humanidades em geral, poderíamos dizer) corrigir a distorção de um documento, procurando indicar para que lado ou em que sentido essa distorção ocorre, já é uma atividade científica. Aqueles que dizem que história e literatura são a mesma coisa não possuem a menor noção de como atua um historiador, nem tampouco sabem alguma coisa sobre crítica documental. Seria ainda possível que os pós modernos defendessem que mesmo sendo a aferição externa ao sujeito, aqueles que aferem estão igualmente mergulhados na subjetividade, impedidos portanto de aferir imparcialmente. Os avanços da ciência e as descobertas que os próprios pós modernos desfrutam, servem para desmentir tal argumento, que pareceria absurdo até ao senso comum. Mais uma vez, torna-se complicado para um pós moderno argumentar em defesa de sua maneira de enxergar as coisas. O linguista e filósofo alemão Karl-Otto Apel foi lapidar quando formulou o conceito de autocontradição performativa, cilada que faz com que a filosofia subjetivista prove de seu veneno. Segundo Apel, uma vez que um cético pós moderno admita que nada há além de crenças parciais e contaminadas pela subjetividade, é necessariamente obrigado a negar aquilo que ele mesmo pensa, pois sua versão dos fatos não passa de um ponto de vista obscurecido pelo seu próprio achismo, não tendo validade alguma. Um pós moderno defende uma teoria e, quando a conclui, está implicitamente afirmando que tudo o que acaba de dizer é pura subjetividade.
O grande Russell, que me serviu de ponto de partida para essa reflexão, foi em toda sua vida, um otimista no que diz respeito às possibilidades de construir um mundo melhor a partir do racionalismo. Ele costumava dizer que se as pessoas fossem mais racionais, o mundo se tornaria um paraíso em relação ao que era, embora num certo momento, como deixa pressupor o excerto inicial, ele próprio tenha se desencantado um pouco. Hoje em dia, mesmo filósofos sérios como John Gray, zombam de Russell, atribuindo-lhe ingenuidade em sua esperança. Se esquecem que a maior parte de suas análises fori construída entre 1920 e 1965; quando se historiciza Russell e quando se atenta para o fato de que ele acreditava num mundo melhor em comparação àquele que ele viveu, não há ingenuidade alguma em seu otimismo. Se em certo sentido a humanidade está em situação pior do que há 70 ou 60 anos, isso não se deve a uma suposta falha do racionalismo, mas justamente ao crescimento dos irracionalismos. Eu, que me coloco como um seguidor de Russell, talvez seja menos otimista do que ele. Vivemos numa era em que o poder irracional dos meios de comunicação de massa e uma forma doentia de capitalismo que não exclui, mas coopta as massas de um modo absolutamente inadequado e imperfeito, além do crescimento assustador das filosofias subjetivistas, ameaçam seriamente as possibilidades de um racionalismo revigorado, muito mais do que a bárbarie do século XX, por serem muito menos explícitos. De outro modo, dentre muitos exemplos, considero absolutamente racional que nos dias de hoje o ser humano prescinda por completo do consumo de carne, o que traria benefícios ecológicos e espirituais de larga monta, assim como creio que conflitos devidos à particularidades culturais e religiosas poderiam ser resolvidos com base no diálogo racional, que não conhece pátria, credo, cor, ou seja lá qual tipo for de particularismo. Não vejo ingenuidade nisso. A razão é um atributo humano e universal, motivo pelo qual, apesar do pessimismo, ainda assim me inspirei a redigir esta apologia.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Indagações


Abaixo, a lista dos questionamentos que mais me perturbaram em 2009, de acordo com o que pude observar em relação àqueles que nelas estão envolvidos e/ou por meio de terceiros. Os meus comentários não têm a pretensão de serem respostas definitivas, são somente hipóteses, desabafos, perspectivas... Aí vai...

1. Como pode o atual presidente da República ter aprovação acima de 70% entre os brasileiros? Uma explicação plausível é que a propaganda autoritária vem sendo muitíssimo bem feita.

2. Por que Nietzsche, mesmo tendo responsabilidade indireta em regimes totalitários do século XX e na atual tendência de autocentramento das pessoas, especialmente jovens, é tão idolatrado, tendo até mesmo virado moda nos estudos acadêmicos? Não é de se surpreender que o narcisismo pós-moderno esteja cada vez mais forte.

3. Por que a maior parte da torcida do Palmeiras ainda coloca Marcos como um grande ídolo se o jogador, visivelmente fora de forma, defasado tecnicamente e psicologicamente desequilibrado, a todo momento soltando a língua para a imprensa e contribuindo repetidas vezes para desagregar o grupo, continua atuando por puro egoísmo e prejudicando o time? Ah, que saudade dos verdadeiros ídolos!

4. Até quando a diretoria do Palmeiras irá administrar o clube como se este fosse uma fabriqueta de macarrão, perpetuando todos os arcaísmos, mantendo a repetida falta de planejamento notada há décadas (exceto pelo período Parmalat), acreditando em lendas como o ex-treinador em atividade/manager Wanderley Luxemburgo e nos tantos jogadores de péssima qualidade contratados ano após ano, cometendo o absurdo de até hoje não ter um departamento de marketing decente, um programa de sócio-torcedor eficaz e categorias de base livres de interesses escusos? Acorda Palmeiras! E pensar que existem tantos torcedores iludidos que acham que gritar "porco" adianta algo. A culpa é desses também!

5. Como é possível que, chegando mais um verão, em pleno século XXI, as grandes cidades brasileiras como São Paulo ainda sofram com as enchentes? É óbvio que os rios, quando transbordam, apenas tomam o lugar de suas várzeas, outrora livres, hoje tomadas pela ocupação desplanejada e irregular. Nenhum político fala em obras de infraestrutura nesse sentido, pois não conferem visibilidade. A política se transformou em puro performismo (essa, uma constatação que vale também para a questão 1).

6. Por que muitas pessoas ainda insistem em comprar animais se tantos deles esperam para ser adotados nos abrigos e nos CCZ´s (ou vagando pelas ruas, é claro)? Animais não são mercadorias.

7. Por que muitos donos de cães ainda insistem em cruzá-los, fazendo proliferar o número de filhotes, potencialmente futuros animais abandonados, jogados à própria sorte, sujeitos ao sofrimento e à morte? Castração já!

8. Por que tantas pessoas encherão a pança com cadáveres nas festas de fim de ano, as custas de sofrimento, exploração, derramamento de sangue e morte? Olhem para um presépio e reflitam...

9. Até quando, sempre que um final de ano se aproxima, as pessoas irão manter enfadonhas promessas para o ano seguinte? E as ridículas superstições? Tudo por causa de uma virada no calendário! Fora isso, há ainda o costume cretino de usar fogos de artifício, responsáveis por tantos transtornos aos animais e acidentes com os próprios humanos. Mentalidade excessivamente festiva só faz mal.

10. Por fim, o que você espera de 2010? Eu não espero nada, pois como já frisei na questão 9, não é uma mudança de 31/12 para 01/01 que me faz esperar algo. O que eu espero, é poder a cada dia de minha vida agir segundo critérios justos e virtuosos. É preciso mais?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Heavy Metal: arte e cultura

That is not dead
Which can eternal lie
Yet with strange aeons
Even death may die - H. P. Lovecraft


Há cerca de dez anos, Greg Graffin, vocalista da banda punk Bad Religion, entrevistado pela revista Rock Brigade, declarava em tom apocalíptico que o fim do Heavy Metal estava próximo, pois, na sua visão, era um estilo musical absolutamente superficial. Um equívoco monumental, uma declaração extemporânea. Os anos 90 foram pródigos em tentativas sucessivas de derrubar o mais poderoso gênero musical do século XX, gente do próprio meio, tal como Rob Halford, vocal do Judas Priest, deu declarações semelhantes. No início da mesma década, o estilo grunge surgiu com força, fazendo estourar bandas como Nirvana e Pearl Jam. Apenas alguns anos mais tarde e um suicídio depois, o grunge havia morrido mais depressa do que apareceu. Ah sim, os fãs do Pearl Jam já irão colocar os dedos em riste e..., chega! O Pearl Jam é uma banda que nada representa na história da música.
Em 1999 a afirmação de Graffin já não condizia em nada com a realidade, não demoraria para que o próprio Halford voltasse ao Judas Priest, Bruce Dickinson havia lançado dois excelentes álbuns na companhia do excepcional Adrian Smith e, em abril daquele ano, ambos voltavam ao Iron Maiden. O lendário Black Sabbath se reunia novamente e tantas outras bandas históricas se colocavam com toda imponência no cenário, fazendo jorrar no mercado discos pesados e tecnicamente primorosos, como manda o bom Heavy Metal, além de porem pé na estrada e riffs no palco, estabelecendo memoráveis turnês, principalmente na Europa e na América do Sul. Os assassinos frustrados do Heavy Metal é que jaziam em suas covas, carcomidos impiedosamente, incautos que se mostraram. Após uma década, o poder hercúleo do Heavy Metal se revela mais intacto do que nunca. Os fãs são leais e a música imorredoura, pois não se rende às podridões e efemérides do mainstream pop contemporâneo e a perícia técnica da maioria dos músicos do estilo, algo que não acontece com o pop e com o que se pode chamar de "rockzinhos", é altíssima. Além disso, e esse é o fator principal, que contraria a declaração de Graffin, o Heavy Metal é um estilo profundo em sua arte.
O vocalista do Bad Religion apenas repetiu um chavão corrente entre muitos intelectuais de botequim, a saber, que a arte só tem valor enquanto mostra-se por meio de função sociológica. Lixo! Essa laia, escória das Humanidades, é incapaz de enxergar que a parte estética da arte é inerente a ela própria. A performance técnica dos músicos de Heavy Metal ocupa importante função entre os apreciadores do gênero, uma vez que a adrenalina descarregada quando da junção entre a própria música e os malabarismos executados por um Yngwie Malmsteen com sua Fender, ou por um Tommy Aldridge atrás de sua imensa bateria, faz com que muitos impulsos humanos sejam canalizados em direção ao elemento artístico. É possível, caso se queira assim, chamar isso de “função sociológica”, embora não seja preciso. Aqui, a expressão artística enquanto tal, se basta. Não se trata de parnasianismo, já me explico. Cabe antes destacar que a arte não precisa necessariamente vetorizar uma ação direta e prática, nem criar uma “consciência” mundana posta a serviço da sociedade. Isso soa ridículo. O punk sempre teve a pretensão de incitar ideologias políticas. Não me consta que tenha feito serviço algum nesse sentido, o mundo não se tornou mais politizado e nem mais justo por conta das letras de “protesto” do punk. Fora isso, o Heavy Metal não trata somente de dragões ou de idealizações da Idade Média (outro chavão), podendo inúmeras vezes conter letras mais voltadas para a temática política, histórica ou filosófica. Tem mais, isto é, não todos evidentemente, mas uma enorme parcela dos apreciadores de Heavy Metal, possui nível cultural acima da média.
Creio que já comecei a mostrar que o Heavy Metal está longe de ser um esteticismo parnasiano. Vale ir além e argumentar que o potencial do gênero para despertar, por exemplo, o gosto pela literatura ou pela história, é imenso. Nos anos 70 o Black Sabbath foi pioneiro na introdução da literatura macabra na música, remetendo às obras do mago Aleister Crowley e de H. P. Lovecraft. Um pouco mais tarde, os britânicos do Saxon utilizaram sagas medievais em suas composições. Nos anos 80, o Iron Maiden se aproveitou magistralmente de temas relacionados à ficção sombria de Edgar Allan Poe, da obra, também de ficção (científica) Dune, da poesia místico-romântica de Samuel Taylor Coleridge e de elementos históricos, traduzidos em figuras como Gêngis Khan, Alexandre, o Grande ou narrativas a respeito da Pré-História e da conquista do fogo. O Metallica (banda que não aprecio), recorreu novamente a H. P. Lovecraft, mestre da literatura-terror para dar título à faixa "The Call Of Cthulhu", (álbum Ride The Lightining - 1984) aludindo ao Necronomicon, obra máxima do escritor. O mesmo fizeram Mercyful Fate, Blue Oyster Cult, e os já citados Yngwie Malmsteen e Iron Maiden, entre outros. Manowar e Virgin Steele, também bandas oitentistas, são conhecidas por agregarem elementos da Antiguidade em suas músicas, tal qual se observa na faixa (do Manowar) que narra o combate de Heitor contra Pátroclo, bem como a morte deste na Guerra De Tróia, ou ainda a tragédia dos Átridas e o assassinato de Pompeu (Virgin Steele). No caso do Manowar, nota-se também a presença da mitologia nórdica nas faixas "Thor, The Powerhead", "Guyana," "Sign Of The Hammer" e tantas outras. A história Contemporânea igualmente marca presença, inaugurada pelo Running Wild quando conta epicamente a Batalha de Waterloo. Também aqui, uma vez mais, o destaque vai para o Iron Maiden, trazendo temática ligada à II Guerra Mundial no discurso de Churchill que serve de intro a "Aces High", nessa própria faixa, em "Two Minutes To Midnight" e em "Tailgunner", mencionando o Enola Gay e as bombas atômicas lançadas contra o Japão. Os exemplos abundam... Diante disso e considerando-se os gêneros musicais do século XX, apenas o Heavy Metal propicia um contato tão intenso com a alta cultura. Os sociólogos de plantão e os “graffins” não veem isso porque a relação, no caso, é mais complexa.
Deve-se frisar, por fim, que a cultura musical mainstream dos tempos atuais chega a ser tão pobre, que uma grande quantidade de pessoas não é capaz de notar as conexões do Heavy Metal com a música clássica, arregalando os olhos quando isso lhes é informado. Bach, Paganini, Tomaso Albinoni, Chopin, Beethoven, estão todos presentes nas composições para guitarra de nomes como o já mencionado Malmsteen, Vinnie Moore, Tony Macalpine, Borislav Mitic, Jason Becker e Eddie Van Halen. Só a argúcia técnica de tais guitarristas lhes permite emular e adaptar os gênios do Classicismo e do Barroco.
São óbvias, apesar de obscuras para tanta gente, as relações de parentesco e fonte de inspiração entre a alta cultura e o Heavy Metal. A sociologização fanática e rasteira não pode, evidentemente, dar conta de tal apreciação. Azar dos que assim pensam, podem promover suas análises desajeitadas, podem tentar matar o Heavy Metal, mas não se esqueçam que “não está morto quem vive eternamente”...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Brasil e o apagão


No último dia 10, uma queda de grandes proporções no fornecimento de energia se abateu sobre o Brasil. Segundo as informações do site Estadão, o apagão atingiu dezoito estados e fez com que cerca de 70 milhões de pessoas ficassem às escuras, mais da metade no estado de São Paulo, o centro econômico-financeiro do país.
Como quase sempre ocorre, as autoridades brasileiras prontamemte apontaram fenômenos naturais como causa do problema. Raios provenientes de uma tempestade teriam atingido uma estação de fornecimento no Paraná. É fácil afirmar tal coisa, de forma que se passa a suposta (e evidentemente falsa) noção de que ninguém pode ser responsabilizado, ou ao menos admitir que há falhas no fornecimento de energia no Brasil. A natureza é impessoal e malsã. Quem administra o país, foge da raia.
Não posso cravar que as causas não tenham sido naturais, entretanto, uma origem de tal monta não seria facilmente identificável? Duas semanas passadas desde o apagão e nenhuma autoridade respondeu coisa alguma. Outra questão: raios causarem um efeito tão acentuado no fornecimento de energia, não denota justamente que o sistema requer, no mínimo, manutenção? Pelo que se vê, as autoridades brasileiras não são capazes de reconhecer isso.
Após o problema, já adentrando na madrugada, descobri uma rara utilidade no rádio do celular, (como já coloquei neste espaço, tenho dó de quem depende de MP3) o único aparelho que naquele momento de blackout poderia trazer informações a respeito do que estava a se suceder. Decorridas aproximadamente duas horas do apagar das luzes, eis que ouço o ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, que é advogado e jornalista, sem a menor experiência em assuntos relacionados à sua pasta, alguém que só ocupa o cargo devido aos lobbies partidários que dominam a política brasileira, declarar em entrevista que a causa do problema havia sido na usina de Itaipu. Curiosa, a peremptória afirmação do ministro depois de duas horas. Se até hoje pouco foi esclarecido... Logo em seguida, o assessor de comunicação de Itaipu, Gilmar Piola, entrou ao vivo na rádio e disse que se a causa fosse em Itaipu, a energia não teria sido reestabelecida no Paraguai, o que já havia acontecido àquela altura. No dia seguinte, a hipótese de Piola se confirmava, desmentindo a afirmação do ministro.
Diante do apagão, afora os desencontros e incertezas, algumas colocações podem ser feitas. Em primeiro, evidencia-se o fato de que o Brasil é extremamente dependente de Itaipu. Um país de cerca de 194 milhões de habitantes que, não obstante o parco crescimento observado nas últimas décadas, demanda modernização urgente em seu sistema de fornecimento de energia, capaz de atender mais e melhor. Segundo, em tempos nos quais as questões relativas à natureza e à preservação dos ecossistemas se tornaram essenciais à qualidade e à continuidade da vida na Terra e das quais está atrelado mesmo o desenvolvimento econômico, (na contramão do contexto, Lula afirmou recentemente que não é possível o desenvolvimento sem devastação ambiental - é óbvio que ele está alheio ao que se vem fazendo na Coreia do Sul, na Holanda ou na Alemanha) é um aspecto lamentável que um país com tantas potencialidades naturais, cantadas em verso e prosa pelos próceres fossilizados do desenvolvimentismo trintista, mas pouquíssimo utilizadas hodiernamente, ainda dependa em alto grau de energia hidrelétrica, não-poluente, porém causadora de impacto ambiental em sua instalação e bem menos renovável do que se pensava há cerca de duas ou três décadas. E o investimento em energia solar e eólica? Um Brasil tropical e com várias áreas de incidência ventosa considerável, investir risivelmente nessas fontes alternativas e renováveis, é quase um crime. Isso, ao mesmo tempo em que o governo se desbunda com o pré-sal e com a Petrobrás. A reboque da segunda colocação, é absolutamente incompreensível notar que no início de 2009, a federação reduziu verbas para os ministérios das Minas e Energia e do Meio Ambiente. Nada poderia ser mais contraindicado no atual contexto! Por outro lado, o assistencialismo barato e inócuo continua a avançar. Tudo errado!
É por essas e outras que concordo integralmente com o jornalista Daniel Piza quando ele escreve “Porque não me ufano” ao responder com realismo as bravatas do presidente do “nunca antes na história desse país”. É a cara do Brasil.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Mais do mesmo. E o outro lado da moeda.

Escrevi há poucos dias sobre o caso Uniban e mostrei que, a meu ver, a aluna Geisy Villa Nova, apesar de ter dado, como se diz, sopa para o azar, foi a vítima do episódio em si. Isso parece óbvio.
Outro ponto que envolve a questão e que a faz ser analisada sob outro ângulo, é o fato da vítima estar se aproveitando do ocorrido para se autopromover debaixo dos holofotes da mídia. Geisy já recebeu convite para participar de filme pornô e para posar nua na Playboy. Deplorável!
Na atual sociedade de massas, contexto no qual, como bem destacou o crítico Lee Siegel em Against the Machine, a cultura já nem é feita mais para as massas, mas pelas massas, tudo se torna motivo para celebrização. Celebrização do grotesco, do ordinário, do mau gosto, daquilo que há de mais baixo na condição humana. O problema é que muitos caem nessa e defendem tais práticas, relutando em buscar os antídotos, que podem ser encontrados na alta cultura - nem seria preciso dizer que o que se entende por "alta cultura" é algo independente do fator econômico-classista; existe muita coisa valorosa na cultura popular de raiz. Todavia, devido à mediocridade intelectual e à incapacidade de sublimação diante das manifestações culturais mais herméticas ou que exigem mais da reflexão, da contemplação, que não são passivas de registro imediato e mais dependentes de um delay sensitivo e interpretativo, a alta cultura é tida pelos tipos comuns como chatice, já que exige esforço intelectual. Sinal dos tempos. Tudo que cai fácil no gosto das massas, vende bem e satisfaz de bate-pronto. Vai embora com a mesma facilidade, tornando quem é dependente, ávido por mais droga.
Quando finalizei o artigo de 12/11, coloquei que o pior no caso Uniban era o paradoxo da violência contra a mulher num país que costuma exaltar a coisificação do feminino. Também afirmei que muitas mulheres brasileiras, desatentas para o fato evidente de que a ideia da mulher-objeto pesa contra elas próprias, acabam em várias ocasiões contribuindo para perpetuar tal noção. Geisy Villa Nova o confirma categoricamente quando se expõe à mídia, aproveitando-se da execração sórdida da qual ela mesma foi vítima para tentar extrair disso algum proveito. Onde está o problema, poderiam perguntar alguns. Está simplesmente no absurdo de buscar se beneficiar a partir de um episódio que a tornou conhecida por meio de extrema violência, fazendo com que um ato covarde e criminoso possa adquirir status positivo na psicologia de uma sociedade massificada. A grosso modo, cai-se no chavão do "falem mal, mas falem de mim". Estar nos holofotes é o que importa, dane-se a perpetuação da imbecilidade, da violência, da coisificação da mulher... Quem cala consente, portanto, que ninguém que costuma compactuar com essas práticas, venha reclamar.

Pensando nisso tudo...
... cabe, a propósito, lembrar que o dia de hoje marca os 50 anos da morte de Heitor Villa-Lobos, ele que foi, sem sombra de dúvida, o melhor e maior músico e compositor da história do Brasil. A genialidade e o talento de Villa-Lobos lhe permitiram algo dificílimo, ou seja, a mescla entre elementos clássicos, historicamente estranhos ao universo musical brasileiro, e tipos sonoros característicos da natureza e da (alta) cultura local, também eles de complicada compatibilidade com o classicismo. Daí vem a obra ímpar deste artista monstruoso em sua capacidade e originalidade. Enquanto isso, a nefasta rede Globo promove um especial para homenagear Cazuza depois de 20 anos de sua morte. E assim vamos...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Desmesura

Conforme o tempo passa, sinto menos reconhecimento e identificação com o mundo em que vivo. Sinto tal impressão em vários episódios e situações, sejam aqueles, de duração mais curta, ou essas, mais afeitas à conjuntura.
Os acontecimentos recentes na Uniban me fizeram pensar uma vez mais na questão. Num programa de debates da MTV Brasil, o presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), que participava da mesa, afirmou que universidades do tipo possuem um caráter muito autoritário, pois encerradas em seu ranço mercantilista, criam das catracas para dentro, um mundo à parte, no qual os "fiscais de disciplina", os bedéis, vigiam os estudantes em cada passo, nem mesmo permitindo a existência de CA´s, grêmios ou jornais internos. Ele pode ter razão em parte do que disse, mas não creio ser esse o foco do problema. Não posso deixar de observar que uma tal colocação se prende ao economicismo rasteiro, típico de um presidente da UNE. O caso não ocorreu por ter sido no interior dos muros da Uniban, mas revela algo que se processa no próprio mundo em que vivemos, faz parte do modo de agir e da visão de mundo de inúmeros jovens de nossa sociedade. Não que estaria dando conta de uma boa análise sobre o tema, longe disso, mas teria sido bem mais simples se ele dissesse que o perfil de alguns alunos que frequentam universidades desse tipo, não é lá muito interessante. Exigiria mais coragem, logo, é mais fácil atacar a instituição, por sua impessoalidade.
Não vou discutir a qualidade do ensino na Uniban, já frequentei uma universidade análoga e a estrutura é péssima, apesar dos altos valores cobrados na mensalidade. Essas instituições praticam uma espécie tupiniquim de capitalismo de fundo de quintal. Não primam pelo aspecto qualitativo, previdente e de longo prazo, estando interessadas somente no lucro do dia seguinte, indo desde as próprias mensalidades, até o pirulito vendido na cantina. Repito, não é esse o foco, nem posso aceitar a ideia de que o caso de Geisy Villa Nova tenha se passado por conta de excesso de autoritarismo na Uniban, pelo contrário, pois se houvesse um zelo maior pela disciplina, o que não é justamente o caso de capitalistas dos trópicos, teriam conversado com a aluna no sentido de orientá-la a respeito da inadequação de seus trajes para um ambiente acadêmico, evitando que se chegasse aos absurdos subsequentes. O caso não foi uma consequência derivada das particularidades que desqualificam a Uniban em vários aspectos. Problemas mais graves do que esse, de outra ordem, mas com forte semelhança de fundo, já ocorreram nas mais conceituadas universidades do país. Os trotes violentos, sempre acontecem aqui ou ali, basta lembrar da morte do calouro de medicina da USP, Edison Tsung-Chi Hsueh, em 1999. Toda vez que me lembro desse rapaz e de sua família, me dá vontade de chorar.
É preciso deixar claro que o que se passou na Uniban, se deveu, repito, à doença das massas em nossa sociedade contemporânea. Vivemos num mundo de total e completa desmesura. Não há valores, não há virtudes, tem-se a noção inglória de que isso diz respeito aos tolos e caretas. Não há parâmetros para se julgar o certo e o errado, o que não possibilita referências para condenar aquilo que não é devido, que é atroz. Não existem limites, essenciais, para que a liberdade consciente possa ser estendida a todos. Talvez não haja nada mais distante do nosso mundo do que o elemento centrípeto da liberdade, tão bem conceitualizado por Irving Babbitt.
Nada havia de valor ou ideologia naquilo que Geisy sofreu, mesmo valores ou ideologias que pudessem ser qualificadas como as mais vis, injustas e cruéis. Um grupo de senhoras católicas extremamente radicais, se lhes fosse possível, poderia chegar ao ponto, se estivéssemos em outras eras, de queimar Geisy na fogueira. Horripilante, deplorável, decerto, mas ao menos por conta de uma concepção religiosa, de uma visão de mundo. Os estudantes que gritaram vitupérios, palavras obscenas e odiosas à Geisy, não possuem qualquer ideologia ou a mais tosca visão de mundo que seja. Estavam exercendo aquilo que os antropólogos conhecem bem e que pode-se denominar de "propensão à violência grupal em situações de exceção", ainda que essa exceção não fosse mais do que o vestido curto e o jeitão provocante da aluna ofendida. Os agressores, desprovidos de qualquer senso de polidez, ponderação, justiça ou tolerância, como tantas pessoas numa sociedade incapaz de julgar com propriedade e sensatez, porque desvirtuadas, agiam no mais cruento instinto selvagem hobbesiano. Sem dúvida nenhuma, Geisy teria sido estuprada se os agressores não fossem contidos. Os jovens não estavam condenando a vítima pela inadequação de seus trajes, mas colocando-se no direito de violentá-la por considerarem-na uma prostituta. Muitas pessoas de nosso mundo já não atribuem nenhum valor naquilo que elas próprias poderiam cultivar como suas próprias qualidades, quanto mais são capazes de enxergar qualificativos que façam incidir algum tipo de generosidade ou tolerância para com os outros.
Incrível ainda, o fato de que até mesmo mulheres estavam envolvidas na violência contra Geisy. É um paradoxo de causar o mais profundo espanto que num país que se gaba à exaustão dos atributos físicos de suas mulheres mais típicas, pessoas do sexo feminino tenham mantido uma postura tão execrável. Outro absurdo é que, de modo geral, as jovens brasileiras pouco notam os problemas que uma cultura tão voltada para a mulher-objeto possa trazer a elas próprias. Desmesura dos nossos tempos, será possível ao menos atenua-lá?!