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domingo, 1 de março de 2009

As origens do Brasil e o cretinismo da busca pela identidade nacional*


Em uma das muitas rocambolescas buscas pela famigerada “identidade nacional”, o já falecido antropólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, inicia sua análise refletindo a respeito da conquista do Brasil pelo império marítimo lusitano. Logo de cara, pode-se perceber que a reflexão do autor é pautada pela dicotomia que opõe o indígena ao português, não por acaso o título do capítulo de abertura é “O enfrentamento dos mundos”. Tal oposição não surpreende, já que, realmente, a visão do “outro”, tanto por parte do nativo quanto do homem de ultramar, foi algo chocante e fantástico. Como coloca o próprio autor, esse encontro só poderia ser entendido pelos índios, se esses recorressem ao seu imaginário mítico. Teriam então, de início, visto nos homens brancos, criaturas de aparência horrível, saídos dos barcos, barbudos e imundos após longo tempo de navegação, mas por outro lado, seres que poderiam estar trazendo algum bem. Os índios ficaram fascinados diante do desconhecido; algum tempo depois já seriam vítimas da desgraça trazida pelo conquistador.
Quanto a esse último, me parece que Ribeiro traça um perfil um tanto quanto simplista da visão que o mesmo sentiu em relação às gentes do Novo Mundo, dando ênfase na questão econômica (Darcy era marxista) que motivou a conquista e logo inferindo que os lusitanos pisaram nas praias do litoral brasileiro já totalmente imbuídos da busca por riqueza, glórias e sabendo que os nativos seriam instrumentos a serviço dele, o conquistador. É certo que não se pode desprezar esses fatores, mas e o imaginário do português, onde fica? Afinal, aquele também era ao europeu um mundo desconhecido, imaginado como um paraíso de cores vivas, de fauna e flora exóticas, de odores mágicos, de habitantes que andavam nus, imagem que até hoje ainda norteia o pensamento europeu sobre a América Latina (o verão carioca e o Carnaval contribuem para vender tal imagem).
É sobre essa "visão do paraíso", termo que deu título à obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda1, e também tema de estudos de Marilena Chauí2, que Ribeiro deixa de conceder o lugar merecido, afinal, a mentalidade, é ela também responsável pelo desenrolar histórico. É certo que o autor toca nesses pontos, mas se deixa suplantar pela mentalidade ocidental que ele próprio quer criticar, isto é, coloca as questões do imaginário em segundo plano para abordar a sanha de poder, riqueza e glória do conquistador, algo que a reflexão de Ribeiro deixa transparecer como algo racionalmente premeditado e posto em plano, exatamente como no papel, no instante imediato em que os lusos desembarcaram no litoral virgem das novas terras. É a partir daí que a análise se torna ainda mais dicotômica. De um lado a avidez do conquistador, cria mais perfeita do demônio, usurpador e genocida por natureza, do outro, um bando de índios vivendo na mais perfeita harmonia, criaturas de pureza e bondade ímpar, habitantes de um mundo onde até então só eram conhecidas a ajuda mútua e a igualdade total (ideia sentimentalóide e obviamente falsa) e que seriam a partir de então arrancados violentamente de seu idílio. É evidente que em várias situações o índio foi vítima de massacres enormes, mas é preciso compreender o curso da história antes de nos atermos ao denuncismo e aos julgamentos, coisa de juízes e não de cientistas humanos, como já versava o grande historiador Marc Bloch. É equivocado querer entender a gênese do processo colonial no Brasil, atrelando-a a um plano que supostamente já existia. Os portugueses pouco planejaram alguma coisa que fosse. Tratar os índios como se fossem de uma pureza angelical é fazer vistas grossas à sua própria capacidade de organização. A ilha de Utopia, descrita por Thomas More, jamais existiu no planeta Terra e pensar o contrário é a mais ingênua fantasia, algo extremamente elementar, mas que até hoje escapa a alguns esquerdopatas. É de bom grado observarmos surgirem teses que polemizam com a insustentável ideia de que os índios brasileiros, por terem sido habitantes de regiões cobertas de florestas e matas, encontravam tudo ao alcance das mãos ou do disparo de uma flecha e prescindiam de formas de organização social e política. O antropólogo Carlos Fausto3 é um dos que mostrou justamente o contrário ao defender que antes da conquista haviam aqui civilizações com formas de governo específicas, hierarquia, normas e tradições culturais elaboradas, aspectos que não foram apanágio somente de incas, maias ou astecas.
O estudo de Darcy Ribeiro enfoca ainda a questão religiosa envolvida na chegada do europeu ao Novo Mundo. Nesse sentido, os jesuítas foram os portadores de uma missão salvacionista cuja intenção era redimir o indígena, tido como herege, idólatra e adorador do demônio, por meio da prática da catequese e da introdução da fé católica entre os gentios. Segundo Ribeiro, embora os jesuítas, de modo geral, fossem bem intencionados, sua missão não combinava com o projeto de enriquecimento do colonizador. Os missionários não conseguiram evitar os massacres e muitas vezes se viam num dilema entre salvar os indígenas de fato ou aceitar a colonização como um caminho inelutável para limpar as almas pecadoras dos nativos. Ribeiro defende a ideia de que venceu o projeto colonizador, mas ele mesmo parece ter dificuldade em explicar se os jesuítas tiveram ou não sucesso. Catequizaram mas não salvaram, lavaram as mãos e realizaram a missão religiosa de que estavam incumbidos deixando, resignadamente, o lado prático da colonização aos colonizadores. Ora, mas se foi assim, então por que pensar que as missões são uma face oposta ao projeto colonial?
Levando em conta o aspecto anterior, é preciso indagar até que ponto a catequese verdadeiramente converteu os índios. No caso da América espanhola, estudiosos como Héctor Bruit4 e Serge Gruzinski5, mostraram magistralmente que a fé religiosa é um fenômeno mental de longuíssima duração e que provém dos recônditos mais profundos da psique humana. Nesse sentido, a conversão, pelo menos em curto/médio prazo, jamais se daria num nível que fosse, no máximo, pouco além do superficial. Bruit reflete a respeito da simulação dos vencidos, ou seja, um emaranhado complexo de práticas mentais e de referenciais de significação que permitiam uma certa resistência do indígena face à dominação. Já Gruzinski, complementando, acredita que a idolatria é um processo extremamente amplo e difuso entre as sociedades nativas, algo que permaneceu e posteriormente foi se transformando e definindo o pensamento mestiço dos povos ibero-americanos, algo porém, do qual ainda não tomamos consciência, o que explica em parte a ridícula busca pela identidade nacional. Assim, índios assistiam à uma missa com crucifixo na mão e logo após se dirigiam à trilhas nas florestas para praticar rituais xamânicos de origem pré-colombiana. É possível que estudos sobre esse tema para o caso brasileiro já tenham sido feitos, mas confesso meu desconhecimento a respeito.
Na sequência de sua obra, Ribeiro aborda o processo civilizatório brasileiro que, segundo o autor, deu origem a dois tipos (mais uma vez dicotômicos) de povoação. Uma delas é a civilização urbana, habitante dos grandes centros, - predominantemente litorâneos, reflexo do tipo de colonização empreendida pelos portugueses - letrada, culta, pautada pelo racionalismo ocidental de matriz europeia, chegada aos progressos da civilização material, atualmente em face com os processos da modernidade, a outra, rural, agrarista, tradicional, de origem humilde, distante dos grandes centros urbanos, habitante de um Brasil desterrado e de baixa densidade demográfica, alheia às novidades da modernidade.
É impossível não se lembrar, lendo Ribeiro, do filme Bye bye Brasil, ao mostrar o choque cultural entre um grupo de mambembes vindos da cidade grande, conhecedores de uma cultura cosmopolita, ainda que capenga e de certo modo precária, com o interior do país. O filme é uma exposição crítica da cultura brasileira, influenciada por estrangeirismos, em choque com o homem rude do sertão, deslumbrado com o progresso material e com a possibilidade de enriquecimento, quando toma os primeros contatos com a “cultura urbana”. Bye bye Brasil traz à tona a incessante busca do povo brasileiro para tentar encontrar sua identidade. Busca essa que se apresenta tortuosa e que me parece artificial, pois ao invés de ser um processo natural que reúna as tradições culturais de todas as etnias que compõem o povo brasileiro - o índio, o branco e o negro - e levando em conta também as miscigenações entre elas, acaba se alojando em elementos externos à nossa brasilidade e, com o tempo, por não conseguir realizar uma síntese fecunda com as tradições próprias do Brasil, se deteriora e faz iniciar um novo ciclo de busca. Quando não é assim, a busca identitária descamba para as idealizações próprias do romantismo, isto é, o herói-mártir, que tanto pode ser um Tiradentes, como um quilombola audacioso, o índio puro e selvagem que consegue uma aproximação amigável com o mundo do homem branco ou o negro que se liberta fantasticamente e como num passe de mágica do jugo dos dominadores. Tudo isso passa a clara impressão de que o brasileiro ainda não se deu conta de que é um povo essencialmente mestiço e que, se tentar procurar sua identidade, deve fazê-lo de modo a sintetizar as contribuições de cada etnia formadora desse povo, sabendo que nem assim deixará de ser mestiço, mas pelo contrário, definirá a mestiçagem como marca principal dessa “identidade”.
Talvez não seja possível oferecer uma receita para isso que acabo de escrever, sendo como eu mesmo já salientei, um processo natural, muito mais da consciência e do pensamento, do que algo propriamemte prático. Nos dias de hoje o Brasil é conhecido no resto do planeta, fundamentalmente pela qualidade de seu futebol e pela inigualável grandeza de seu carnaval. Quanto ao futebol, é inegável sua importância no que concerne à cultura de massas e a vibração e o êxtase coletivos proporcionados pelo esporte mais popular do país, são aspectos a serem considerados. O Carnaval também é um momento ritualístico que tem por objetivo descarregar os instintos e as pulsões, é igualmente um êxtase coletivo que não poderia se dar em atividades que exigem disciplina e concentração. Acontece que liberar os instintos e as pulsões é uma necessidade do ser humano, não só do povo brasileiro, tanto é assim que nos EUA, por exemplo, os esportes mais populares são o beisebol, o basquete e o futebol americano, assim como na Itália é o automobilismo, ou seja, cada país tem o seu esporte que cumpre o papel do futebol no caso brasileiro, nem por isso esses países são conhecidos por “país do beisebol”, ou “país do automobilismo”. Rituais como o carnaval também existem no mundo inteiro, podem assumir, é verdade, forma e conteúdo diversos, mas o objetivo é o mesmo. Fazem parte da cultura de um país, isso não se nega, mas não é como no Brasil, onde é erigido como um ícone representativo da identidade coletiva de um povo inteiro. O mais paradoxal é que futebol e carnaval não são elementos originários da nossa cultura, são importações.
Pior ainda do que vagar inutilmente na busca de uma identidade unívoca e uniformizante, característica típica de regimes políticos autoritários, é se orgulhar do famoso “jeitinho brasileiro”, acreditar que oferecer cargos públicos a amigos ou enganar os outros, não só é plenamente justificável, como significa esperteza. O “jeitinho” é responsável por um dos maiores males de nossa sociedade, ou seja, a confusão entre público e privado, entrave fundamental a qualquer possibilidade de democracia. E assim vamos...

* O texto é uma adaptação feita a partir de um trabalho acadêmico redigido no 2° semestre de 2004 para o curso de Antropologia da faculdade de História da PUC/SP.


Notas

1. HOLANDA, Sérgio Buarque de, Visão do Paraíso, São Paulo, Brasiliense, 1992, (5° edição).
2. CHAUÍ, Marilena, Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Perseu Ábramo, 2000.
3. FAUSTO, Carlos, Os índios antes do Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
4. BRUIT, Héctor H., Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos, Campinas, UNICAMP, 1995.
5. GRUZINSKI, Serge, A colonização do imaginário, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

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