Poucas coisas são tão comuns hoje em dia, quanto presenciar um pseudointelectual marxista e esquerdopata afirmar do alto de sua peculiar arrogância, que o individualismo é o mal dos novos tempos. Do mesmo jeito, mas adepto de ideologia diversa, o direitista radical, leitor de Ayn Rand, cego em relação à cultura atual, vê no egoísmo um bálsamo. Confusão das mais grosseiras, uma vez que esse tipo de juízo é incapaz de diferenciar dois conceitos tão radicalmente opostos, tais quais o egoísmo, esse sim moléstia grave no mundo de hoje, e o individualismo. É o império do senso comum e da ignorância.
O egoísmo, ao contrário do que pensam os defensores da teoria da Tábula Rasa, arautos da ideia de que o ser humano é bom por natureza, não admitem que esse sentimento é instintivo e que sem um mínimo dele, é bem provável que o Homo sapiens não tivesse evoluído. Os adeptos do bom selvagem não leram Hobbes. Marx leu, mas parece não ter aprendido nada.
O problema do egoísmo é o fato de que ele ultrapassa as raias do absurdo nas atuais sociedades de massa, alcançando status patológico. Muitas pessoas hoje em dia acreditam, sem muitos rodeios, e até de modo um pouco inconsciente, que tudo no universo existe e opera em função delas próprias. O egoísta enxerga as coisas como se estivesse enclausurado entre as paredes de um estreitíssimo corredor, é auto-centrado, nada existe para ele além de seus desejos vis e paixões mesquinhas.
Assim sendo, é absolutamente falso creditar a um egoísta a valorização da liberdade, pois ele atua, em verdade, no reino ameaçador da anarquia, onde predomina a lei do mais forte. Se ele não mede nem avalia seus desejos, sendo capaz de tudo a fim de se sentir satisfeito (satisfação paliativa, prazer, não felicidade), frequentemente acaba passando por cima dos direitos alheios, jamais atenta para seus deveres. O egoísta nunca percebe que a liberdade é o mais difícil dos exercícios, devendo invariavelmente ser acompanhada do senso de responsabilidade. Buda, Confúcio e Aristóteles, desde eras remotas, e autores modernos como Irving Babbitt, mencionaram o elemento centrípeto da liberdade, um freio aos impulsos destrutivos, próprios do egoísmo exacerbado. Hoje em dia, Nietzsche e os pós-modernos são as leituras da moda, homens cujo pensamento é sem dúvida mais atraente, pois atiram a responsabilidade para o alto. O mundo vai muito bem, obrigado...
No espectro contrário do egoísmo, está o individualismo, que nada tem de instintivo. Ecos dele são notados na Antiguidade, não só no Ocidente, mas também na obra dos pensadores orientais citados acima, no final da Idade Média, na literatura de Dante, e na filosofia do século XVIII, no Iluminismo de Condorcet, de Montesquieu e de Voltaire.
O individualismo é uma atitude político-filosófica, consiste na crença de que o indivíduo, como a menor e mais frágil esfera de poder, é livre para escolher, desde que aja dentro da lei e de que não ponha em risco a integridade física e moral de outrem. O indivíduo é dotado do arbítrio de escolher sua própria religião, seus hábitos e costumes, suas convicções políticas, tem direito de expressar seu pensamento e de seguir o rumo que considerar melhor para si próprio. Nenhum padrão cultural é mais importante que a liberdade individual e não é pelo fato de uma cultura existir, que ela deve ser imposta ao indivíduo.
Além desse horizonte político-filosófico, caro ao individualismo e inexistente no egoísmo, há outra importante diferença entre os dois conceitos, a saber, que o individualista, ciente de seus direitos, jamais se esquece de que também tem deveres. O individualista não pratica libertinagem, já que nunca perde de vista que, como defensor de seu direito de escolha com base nas leis da sociedade, sabe que os outros também têm direitos que não podem ser tolhidos. A velha e manjada máxima "a minha liberdade acaba onde começa a do outro", explica essa ideia de modo simples e inequívoco. Graças a tal consenso, presente na cultura política das democracias modernas já consolidadas, é possível a vida em sociedade.
Por fim, cabe salientar que o egoísta, a despeito de crer que é o centro do mundo, quase nunca objetiva preservar suas particularidades, mas ao contrário, nas sociedades de massa, tem a nefasta necessidade de se sentir partícipe desse mundo performático criado por ele e sua tribo. Assim, ele se despoja de sua liberdade no sentido espiritual, político e filosófico, algo que não sabe nem ao menos o que significa, e se encerra nas limitações ultrajantes da lógica de rebanho, estratégia que lhe possibilita estar no palco dos acontecimentos, apto a galgar suas vontades. É o perverso paradoxo do egoísmo das multidões, que tolhe o pensamento livre e o senso crítico, pilares da liberdade individualista. O individualista busca sempre estar afastado desse entusiasmo rasteiro, desse turbilhão de paixões emburrecedoras, a ele, bastam o exercício filosófico e a atuação política.
Agora já está na hora de dar uma lida em Voltaire...
Excelente!
ResponderExcluirÉ lamentável a confusão dos termos ou até mesmo a má-fé aplicada à questão, haja vista que o individualismo é um dos pilares para o mercado livre que é o bode expiatório atual.