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segunda-feira, 7 de março de 2016

O paradoxo da Polícia Federal e de Sérgio Moro e outras questões


Sou cético por natureza, postura que tem me servido desde há muito para evitar decepções. Se as coisas acontecem de acordo com o que espero, tanto melhor, do contrário, vida que segue.
Na última sexta-feira (04/03/2016), o Brasil acordou com a notícia de que Lula estava sendo conduzido coercitivamente (ao contrário do que ele declarou, fugiu duas vezes quando instado anteriormente a dar depoimento sem ter havido coerção) a depor na Polícia Federal em São Paulo, além de ser alvo de mandato de busca e apreensão. A parcela instruída e decente da sociedade comemorou aquilo que poderia representar o início de uma vitória definitiva não apenas sobre o próprio Lula, mas sobre toda a hoste do PT, dada a importância da figura do ex-presidente. Todavia, acredito que a comemoração tenha sido prematura: não afirmo que não irão haver novos desdobramentos (a ação da PF não teve a ver com as declarações bombásticas e gravíssimas dadas por Delcídio Amaral e divulgadas pela revista Isto é), mas fiquei com a impressão de que houve mais estardalhaço do que efetividade, propriamente dita. Não sei se por falta de eficiência ou se tudo não passou de circo pré-orquestrado, portanto, ficam algumas perguntas:

1. Será que Lula, de fato, prestou depoimento?

2. Caso tenha prestado, por que este foi tão curto?

3. Quem é suspeito de vários crimes e é investigado por uma série de práticas ilícitas não deveria ser interrogado por horas a fio, sem que se desse a Lula e ao seu partido chance de se organizar tão rapidamente a ponto do ex-presidente conceder entrevista em rede nacional pouco tempo depois de deflagrada a operação?

4. Por mais que o teor do suposto depoimento deva permanecer em sigilo, por que não estamos observando nenhum comentário sequer a respeito das possíveis respostas fornecidas por Lula?

5. Um interrogatório bem conduzido, ainda mais se o interrogado tem uma imensa série de questões a esclarecer, sempre deve gerar intenso cansaço físico e psicológico, daí a importância de se alongar o depoimento e lançar questionamentos contundentes que façam com que o investigado caia em contradição. Por que Lula saiu da PF com ares triunfais, sem dar nenhum sinal de ter sofrido pressão, sem apresentar sinais de estafa física e mental? Não, por mais que o ex-presidente seja macaco velho, delegados da PF deveriam saber como colocá-lo em uma sinuca de bico, ainda mais em função do capital político de Lula ser quase inteiramente dependente de sua retórica e dos caracteres imediatos de sua postura e de seu gestual. Era preciso ter minado seu arsenal retórico e ferido com força sua imagem. Não foi isso que se viu...

6. Não se trata de um grande paradoxo, por um lado, que se deposite tanta esperança em Sérgio Moro e na PF e, por outro, notar que a condução coercitiva, pelo menos em termos imediatos, não causou nenhum estrago na retórica e na imagem de Lula? Volto a indagar, houve falha ou tudo isso foi uma farsa?

7. Se em um arranjo ditatorial como aquele que ora estamos vivenciando o trâmite dos acontecimentos, tanto em âmbito oficial como fora dele, não se dá de acordo com a lógica normal, mas segue uma hierarquia de comando mutável, multidirecional, imprevisível, justamente com o objetivo de gerar desorientação nas pessoas, não cabe ponderar sobre a possibilidade de Sérgio Moro ser somente uma peça no tabuleiro do complicadíssimo jogo de xadrez que envolve os poderes de Lula e do PT? Nos  bastidores, ninguém sabe ao certo quanto a ameaças e chantagens que podem ocorrer.

Ao fim da operação Aletheia, seria óbvio pensar que Lula devesse estar mais fraco do que antes dela. Não foi isso que notei. Quem é antípoda do PT não precisava desse estardalhaço todo para aumentar seu repúdio contra a organização criminosa que assola o país há treze anos. Teria sido uma excelente oportunidade para causar estrago em Lula e no PT, amealhando aqueles que possivelmente ainda não se deram conta da gravidade que representa a continuidade do atual (des)governo no poder, contudo, o que se viu na tarde de sexta-feira foi a figura de Lula, senão fortalecida, o que seria muito diante dos crimes que cometeu, no mínimo tendo a chance de emitir uma mensagem, algo considerável em se tratando do que expus acima e que lhe confere algumas possibilidades de recuperar porções de um terreno que a esta altura já deveriam ter sido definitivamente conquistadas por quem lhe combate.
Não se pode bobear com um psicopata como Lula e, contrariando Sun Tzu, nesse caso, não se deve deixar qualquer brecha para o inimigo, ou então ele irá mentir descaradamente, fará jogo de cena e continuará posando de vítima até conseguir convencer gente incapaz de entender o funcionamento de uma mente pérfida e doentia. Lula só será derrotado quando estiver cem por cento fora de ação.

Aguardemos...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O PT e a microfísica do poder


Embora o pós-modernismo tenha atribuído a si mesmo ares de pensamento vanguardista, no fundo e em última análise, seu esquerdismo o manteve sempre preso ao arcabouço teórico de Marx. Em Microfísica do poder, Michel Foucault, um dos baluartes do pós-modernismo, escreveu, de maneira geral, que as relações de poder nas sociedades de massa haviam se disseminado por redes difusas que abrangem o cotidiano dos indivíduos, considerando-se aí praticamente todas as trocas (no sentido de relações) que perfazem a vivência dos mesmos. Apesar de ter rompido, até certo ponto, com o conceito (jamais plenamente explanado e definido) marxiano de classe e ter dado maior ênfase ao indivíduo, Foucault não deixou, em momento algum, de permanecer atrelado à questão da dominação burguesa e da base econômica. Assim, segundo ele, os burgueses, pelo fato de serem detentores do capital, não apenas o capital dinheiro, mas principalmente o capital cultural, eram responsáveis por dominar uma massa indistinta de oprimidos. Onde isso desemboca? Na necessidade, de acordo com Foucault e todos os esquerdistas, de superação do capitalismo. O que ficaria em seu lugar é a utopia socialista-comunista como já a conhecemos e, em termos reais, traduzida pela tragédia que representou sempre que tentada na prática.
Desde Tocqueville, pelo menos, os liberais sabem que o elemento político, desprezado pela esquerda, é fundamental para se entender as sociedades, sobretudo aquelas nas quais - e aí estamos pensando no mundo moderno - existe, ou deveria existir, um sistema parlamentar garantidor da resolução de conflitos com base nas leis e na isonomia jurídica. Pelo fato de não haver em Marx uma teoria do Estado, tampouco uma história que dê conta de explicar seu desenvolvimento, tanto o autor de O capital como seus discípulos nunca puderam enxergar que um sistema centralizador invariavelmente gera uma intensa desigualdade política. Se a instauração do comunismo como regime econômico ideal direcionasse a superestrutura, como quisera Marx, então por que Lenin implantou um regime de terror? Não deveria ter a estrutura econômico-material conduzido à harmonia? Não foi o que aconteceu justamente devido à impossibilidade de se apontar o elemento político apenas como acessório secundário, em outras palavras, a centralização bolchevista determinou, como não poderia deixar de ser, um Estado totalitário.
No que diz respeito ao fator econômico, também estão cientes os liberais, graças à contribuição da Escola Austríaca, de que no capitalismo as trocas econômicas ocorrem com base em interesses livres e voluntários de indivíduo para indivíduo. A Economia, nesse sentido, não é uma pesada ciência de gabinete, mas uma dimensão corriqueira da vida humana. A intromissão estatal nos assuntos econômicos nasce da ideia de centralização e, à medida em que o Estado procura controlar o dia a dia de milhares de pessoas, ele apenas poderá fazê-lo a partir de abstrações ideológicas que ferem os mais elementares princípios da Economia, - como fazer cálculo se não há mercado?; como ter a pretensão de planejar se não há cálculo?; como alocar os recursos de modo correto e eficiente; como precificar? Sendo assim, por entrar em contradição com suas próprias premissas, o intervencionismo socialista só se constrói a partir da gritante desigualdade política que o caracteriza e só pode se manter lançando mão de uma política ditatorial. Algum marxista ainda poderia colocar que a meta final do comunismo é a abolição do Estado, ao que retrucaríamos afirmando ser altamente improvável - senão impossível - passar do planejamento econômico socialista, que exige intensa atuação estatal, à sua ausência. Daí advém a necessidade de controle e a consequente ditadura, inerente a esse sistema.
Retornando a Foucault, penso que este acertou no que concerne à difusão das relações de poder e sua consequente abrangência em níveis microscópicos, porém, tais relações devem ser esmiuçadas antes em termos políticos do que econômicos. Quando o pensamento de esquerda passa a dar as cartas no âmbito cultural, quando pauta grande parte da grande imprensa, quando norteia o ensino nas escolas e universidades de acordo com a bússola de Marx, quando aparelha instituições com quadros que lhe são dóceis e subservientes, - até o STF! - quando controla centrais sindicais na mais autêntica tradição peleguista, quando coopta "artistas", "intelectuais" e "jornalistas" para que estes sirvam como porta-vozes, quando possui uma rede de milícias reais e virtuais que buscam vigiar seus opositores, quando faz uso de sua influência para obter lobby junto a empresários, estamos diante do poder - no nosso caso atual, do poder de Estado - que visa controlar o cotidiano dos indivíduos em diversos níveis. Trata-se da própria microfísica do poder que, em sua origem, é política e, enquanto tal, envolve, por tabela, aspectos econômicos. Aqueles que não conseguem observar nesse arranjo a descrição exata do poder de Estado instalado pelo PT no Brasil, ou são cegos e ingênuos, ou de algum modo extraem vantagens dele, isto é, são vetores da desigualdade política que caracteriza sistemas autoritários e ditatoriais.
O poder de Estado não tem a conotação de classe econômica, muito menos advém do capitalismo, como pretendiam Marx (para o qual o Estado funcionava como "comitê executivo da burguesia"), Foucault e todos os outros esquerdistas. É um poder, afinal de contas, fiel ao próprio conceito de poder na sua acepção política autoritária, um poder que, através de redes difusas, microscópicas e, portanto, muitas vezes de percepção nem tão fácil e imediata, abarca e tenta - com altíssimo grau de sucesso - controlar as mínimas relações pessoais. Na minha opinião, não será com manifestações dominicais pré-agendadas que a sociedade cujo clamor pela liberdade, pela isonomia jurídica e pelos valores republicanos de boa governança irá lograr êxito no combate ao autoritarismo petista. Liberdade é algo que costuma exigir posturas mais contundentes e que se estendam por mais tempo do que desfiles de avenida...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O PT no fim e o pós-PT: não basta substituir o poder, é preciso reinventá-lo


Nas palestras que proferiu à TV polonesa e, posteriormente publicadas na Gazeta Wyborcza, o grande filósofo Leszek Kolakowski colocou as seguintes palavras sobre a questão do poder:
"As ferramentas que o povo tem para o controle do poder nunca são excelentes, as mais eficazes que a humanidade inventou até o momento para impedir uma tirania arbitrária são, precisamente: manter as ferramentas de supervisão do poder pela sociedade e limitar a abrangência do poder do país àquilo que é de fato essencial para que a ordem da sociedade seja preservada. Querer regular todas as áreas de nossas vidas, afinal de contas, é o que faz um poder totalitário."
Para Kolakowski, que não acreditava na anarquia, tampouco na democracia direta, assim como eu também não acredito, os grifos (feitos por mim) indicam claramente a defesa dos mecanismos de representatividade que, em uma sociedade livre, servem exatamente para impedir a concentração de poder nas mãos de um déspota, de um grupo partidário, ou do próprio Estado, aviltado institucionalmente por tal grupo, sendo este último caso, na melhor tradição gramsciana, precisamente o que ocorre no Brasil (des)governado pelo PT. Desde já, vale destacar que em uma sociedade cuja vida política corre dentro da normalidade, nada mais recomendável do que o apreço pelas instituições. Entretanto, considerando-se o caso brasileiro, no qual estamos muito longe de um regime político preservador da liberdade, é mais válido ainda indagar se nossas instituições podem prestar algo benéfico à população. A resposta é claramente negativa.
Em uma recente querela envolvendo nomes conhecidos da direita brasileira, todos eles obviamente opositores do petismo, observou-se ferrenha discordância no que toca aos caminhos a serem tomados para que o PT seja devidamente alijado do poder que ora ocupa no âmbito federal. De um lado, aqueles que não enxergam possibilidades na via institucional, de vez que a mesma encontra-se totalmente destruída pela cooptação sistemática, - importantíssimo salientar, nesse sentido, que trata-se de uma situação que abrange esferas externas à própria política, notadamente a cultura e as mentalidades, tendo inclusive aí sua origem - e de outro, os que defendem a substituição do governo por meio daquilo que está previsto na Constituição, isto é, o impeachment. A despeito do fato de que, no momento em que vivemos, cisões entre aqueles que se opõem ao PT se mostrarem prejudiciais a todos que não podem mais suportar tamanho estado de calamidade ao qual a nação foi conduzida pelo partido de Lula e José Dirceu, devo afirmar que, a meu ver, a primeira perspectiva, está absolutamente correta. Se não é possível que o poder seja eliminado por completo - para quem não crê em anarquia - no Brasil de hoje, é algo que precisa ser reinventado: o Estado brasileiro não apenas não oferece rigorosamente nada que preste ao cidadão, como também suga quase metade dos rendimentos do trabalhador; além disso, no âmbito da política, os mecanismos de representatividade têm se apresentado extremamente deficientes, pois não existem partidos de direita que possam diversificar os discursos e não há quase ideias em discussão, mas tão somente arranjos escusos em torno dos joguetes de poder, problema que atinge partidos e quadros concomitantemente, um reflexo da cooptação gramsciana.
O impeachment, como já opinei em outro artigo, poderá ter efeito simbólico significativo, mas jamais será suficiente para sanar um quadro metastático de doença da máquina pública, ainda por cima, consubstanciado em função da própria sociedade que, se hoje em dia finalmente se deu conta, em sua maior parte, do significado nefasto representado pelo PT e pelo esquerdismo em geral, ainda está longe de ser capaz de pensar em termos de liberalismo político-econômico e conservadorismo moral.
Tudo se complica ainda mais porque, se o impeachment carece de alcance e abrangência, nem mesmo um saneamento completo do Estado e um processo de mudança na cultura e na mentalidade poderão garantir o futuro próspero pelo qual anseia o cidadão. Em primeiro lugar, porque isso leva tempo, no mínimo cerca de três décadas, em segundo, porque não se tem até agora o substrato necessário, traduzido justamente por um pensamento orientado na direção de valores políticos, econômicos, culturais e morais capazes de alterar a rota.
A teoria do Estado patrimonialista, sobre a qual Bolívar Lamounier vem insistindo com rigor científico e habilidade intelectual, é uma realidade em nosso país, tanto histórica, dada sua própria formação desde D. Pedro I, como política e cultural, incutida cada vez mais na mente do povo pela doutrinação de esquerda e tornada avassaladora pela organização criminosa que nos comanda - ao contrário do poder supervisionado e limitado pela sociedade, o petismo se caracteriza pela intensa concentração de poder em torno do partido com vistas à perpetuação, sem se fazer de rogado no solapamento das bases democráticas - pelo contrário, já que essa é sua razão de ser. O Estado patrimonialista não só se torna muito maior do que a própria sociedade, como faz dela um corpo fragilíssimo na missão de colocar peias ao poder estatal, elemento propiciador de liberdade. É um arranjo inteiramente antiliberal e gerador de intensa desigualdade política.
O grande desafio da população brasileira é como mudar essa situação, não somente pensando em tirar o PT do poder, mas já vislumbrando um panorama pós-PT. Há um alento no fato de que hoje, como coloquei anteriormente - e várias pesquisas de opinião têm mostrado - a maior parte das pessoas já identificou a verdadeira face demoníaca do PT, todavia, é nítido também que muito pouca gente sabe como combatê-lo com as armas da argumentação e das ideias políticas, tampouco possui noção dos princípios básicos de cultura necessários para organizar uma sociedade livre, próspera e bem protegida da tirania. Quem forma opinião será, cada vez mais, responsável na proposição de novos caminhos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A manipulação da linguagem como forma de ignorar a realidade


Nos últimos cerca de 250 anos o ser humano vem sendo quase que frequentemente bombardeado com a ideia segundo a qual a realidade não apenas é algo inatingível, - entendimento, dependendo do enfoque, correto até certo ponto - como principalmente, a aventura que corresponde à busca do conhecimento e que nos deveria servir de motivação moral e existencial, constitui capricho sem importância, concepção perniciosa, no mais alto grau.
É paradoxal que o nível superlativo de desenvolvimento no campo científico e tecnológico observado nesse período tenha sido acompanhado por perspectiva oposta no que concerne ao entendimento filosófico. Mais estranho ainda é o fato de que, se por um lado, os apólogos do relativismo, do culturalismo e do esquerdismo em geral erigiram um muro espesso entre os homens e a possibilidade de se gerar conhecimento, obstáculo apenas passível de ser transposto em caso de aceitação das ideologias e das práxis características de tais corpos doutrinais, elas mesmas eliminadoras do elemento de interioridade no ser humano, por outro, o humanitarismo, que também lhes é típico, induz pessoas desavisadas à crença de que tudo é possível, de que não existe uma ordem moral e espiritual insubornável em relação à qual, em última instância, somos incapazes de promover modificações sob pena de cair no totalitarismo e justificar as maiores atrocidades em nome de causas abstratas e filosoficamente execráveis. As doutrinas que descartam a moral e que tentam fazer da experiência humana um jogo de forças e de vontade de poder jamais poderão legar qualquer ensinamento a respeito da maneira de se lidar com a realidade, dado ontológico que requer resignação, respeito, humildade, coragem e busca de conhecimento.
Não é de se estranhar que, quando não há moralidade, a mentira que assalta a realidade e a distorce de maneira vil, somente de acordo com as conveniências temporais de agentes com objetivos de poder e ávidos por benefícios pessoais, torna-se prática corriqueira. E nunca é demais destacar um dos mantras mais reconhecidamente totalitários, enunciado por Goebbels à época do nazismo, mas já amplamente recomendado e utilizado por Lenin logo após à vitória bolchevique na Revolução Russa: "uma mentira repetida mil vezes se torna verdade".
A linguagem, que no esteio das correntes filosóficas amoralistas (e imoralistas) tanto foi foco de estudos no século XX, ganhou com esses mesmos um status dos mais privilegiados nas tentativas de subornar a realidade. Relativistas e céticos, muito provavelmente por terem percebido que a comunicação de massas rapidamente havia se tornado um processo essencial para que líderes se dirigissem a populações contingencialmente grandes e diversificadas em vários aspectos (é coincidência que todo líder totalitário teve e tenha junto de seu aparato repressivo um departamento de propaganda e um especialista em comunicação?!) na tarefa de conquistar seus corações para a causa ideológica, passaram a defender ferrenhamente a noção de que a realidade não existe (ou de que sua existência não é importante) podendo ser preenchida (ou substituída) inteiramente pela linguagem, um código, não devemos nos esquecer, criado pelo ser humano. Analisada atentamente nesse contexto, a linguagem, antes de servir como campo comum de diálogo e acessório através do qual se pode gerar conhecimento, se torna enunciado da vontade de algum ente poderoso, afinal, assim sendo, ela estaria apta a fazer as vezes do real. Tem-se assim, uma perversa inversão da função da linguagem e do sentido do processo de comunicação. Como identificar uma mentira, nesse âmbito, se o ato de mentir, enquanto tal, não pode ser aferido por algum padrão de realidade?!
Exatamente por ser uma criação humana com função específica, a linguagem não é um Deus ex machina capaz de substituir ou alterar a realidade. A experiência dos homens é complexa, múltipla e se combina a partir de uma miríade de formas e conteúdos de acordo com as atividades que realizamos, inclusive com a linguagem guardando parte considerável em tal arcabouço. Para que seja capaz de exercer sua função na experiência humana, a linguagem necessariamente precisa estar amparada em algo factível, passível de ser imaginado, discriminado e concebido, isto é, ela não é independente da realidade que lhe confere seu núcleo racional, a menos que tributária de uma concepção pobre que não lhe conceda nada que vá além do mero código, sem requerer uma narrativa organizada, uma capacidade de descrever fenômenos e processos com máxima eficácia (ao menos em termos de linguagem denotativa, que é aquela que mais nos interessa para tratar de política e filosofia) e, desse modo, contribuir com a aventura do conhecimento. Em seu caráter intrínseco, a linguagem obedece a determinadas sequências, termos, disposições e componentes que, conforme estejam expressos, assumem significados particulares e que necessitam de discriminação. Também nesse caso, trata-se de um processo construído com base no que é externo à linguagem, ou seja, a própria realidade. Não há como manipular o real fazendo uso da linguagem, pois assim ela se torna estéril, hermética, engessada e desprovida do sentido que lhe confere a possibilidade de gerar conhecimento. Só estando em conexão com a dimensão ontológica é que podemos entender e fazer uso da linguagem como um instrumento a nosso favor, instrumento de entendimento, de conhecimento, de racionalidade, de moralidade, de existência e de experiência.
Sempre que imbecis, caras de pau, corruptos e sem um pingo de caráter dão as caras por aí proferindo discursos baseados não na realidade ontológica, aquela da qual fazemos parte, tenha-se ou não consciência disso, mas tão somente nos estreitos limites de seu mundozinho podre, eles imaginam (com certa dose de razão dependendo do público ao qual se dirigem...) poder vender doses cavalares de mentiras. Contudo, todo indivíduo cônscio, dotado de moralidade e do qual, portanto, a interioridade não pode jamais ser subtraída, carrega consigo a capacidade do discernimento e de identificação do núcleo racional de toda atividade humana. Esses continuarão se opondo e denunciando a vileza torpe dos manipuladores da realidade, afinal, como bem colocou Ayn Rand, "você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade".

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Memórias antipetistas


Quando eu era criança, escutava em casa conversas sobre o esquerdismo em geral e o PT especificamente que, àquela altura, já representava o leitmotiv da esquerda no Brasil. É claro que, sendo bastante novo, eu ainda não podia, nem de longe, estabelecer um quadro explicativo definitivo a respeito da questão. De todo modo, aquilo jamais deixou de fazer parte dos meus pensamentos, o que foi de utilidade cabal para meu futuro. Nos anos subsequentes, o mundo assistiu ao colapso da URSS e, antecipando as frias - e a-históricas - previsões de Francis Fukuyama, comentadores diversos davam como certo que não só um regime político e econômico localizado no tempo e no espaço havia ruído, mas também a ideia central que lhe servia como pedra de toque. Aquilo soava como uma constatação perigosamente simples: governos que se fiavam em premissas falhas, mais cedo ou mais tarde encontrariam seu fim, o que é correto, mas o que garantiria que as diretrizes teóricas terminariam junto?
Na escola, eu sempre me deparava com análises que pintavam quadro contrário ao que havia sido proclamado quase como um elemento do senso comum. Ao invés de consolidarem o sepultamento do comunismo, professores e livros didáticos promoviam descrições altamente enaltecedoras do pensamento de Marx e da doutrina por ele teorizada, ao passo que todas as mazelas do mundo eram colocadas na conta do capitalismo. Havia nisso, no mínimo, uma grande contradição.
Constantemente, eu me punha a comparar o que ouvia - e continuava ouvindo - desde criança com o mote que caracterizava o ensino escolar. Nesse momento, eu já era adolescente e possuía instrumental um pouco mais desenvolvido mas, mesmo assim, criava-se uma confusão em minha mente. Alguém havia errado, ou foram as pessoas que me transmitiram a educação no sentido moral do termo e cuja formação se deu em tempos nos quais o ensino, amplamente entendido, era muito melhor no Brasil, ou o equívoco estava bem ali, diante de mim, materializado em meus professores e nos livros didáticos que utilizávamos. Períodos de inquietação nos quais indaguei a mim mesmo se havia possibilidade de haver acerto em uma teoria que prega a violência e a eliminação de setores da sociedade, a completa submissão do indivíduo ao Estado e à marcha de uma história pré-estabelecida, além de inúmeras contradições internas, foram incontáveis. Moral e filosoficamente, porém, cada vez mais eu me aproximava da certeza de que não existia a mínima chance daquilo estar correto.
No Brasil da década de 1990, a social-democracia triunfou e logrou grande êxito ao colocar a economia do país no rumo certo, o que garantiu a FHC duas vitórias seguidas na corrida presidencial, ainda assim, no âmbito da cultura, a propaganda comunista se tornou ainda mais intensa na virada para o século XXI (já escrevi a respeito aqui: http://aristaire.blogspot.co.id/2012/10/pt-e-psdb-iguais-no-discurso-diferentes.html). No curso pré-vestibular e na faculdade de História, me deparei não só com o enaltecimento das ideias de Marx e com a demonização do capitalismo, mas com discursos absolutamente panfletários e enfurecidos a favor do esquerdismo. Em tais ambientes, como em uma pequena amostra da sociedade comunista, - o que ficou ainda mais nítido para mim - o patrulhamento ideológico e a completa eliminação do dissenso dão a tônica. Tanto o desconhecimento, como o corte seletivo de tudo aquilo que reduz Marx a pó são comuns nessas cátedras do pensamento único, o que obrigatoriamente leva os discordantes a terem que percorrer um trajeto completamente diferente (e cem por cento confidencial) daquele que é ditado. Internamente, eu continuava confrontando o esquerdismo com o que havia aprendido desde tempos àquela altura já remotos, somando a isso novos conhecimentos adquiridos em buscas autônomas por autores e ideias que se opunham às de Marx. Foi bastante interessante ter notado que os próprios esquerdistas, embora suas práticas os desmentissem, não usavam com recorrência o termo "comunismo", a não ser de maneira romantizada, tampouco admitiam que os retumbantes fracassos do comunismo fossem decorrentes das falhas desse paradigma. Também curioso era observar que aqueles que não se julgavam alinhados com Marx se revelavam incapazes de propor uma crítica contundente ao esquerdismo, deficiência visível sempre que, de acordo com esses, a denúncia aberta do comunismo era uma "paranoia", "coisa de quem ainda não sabia que o Muro de Berlim havia caído há muito". Sem sabê-lo, os não-marxistas davam combustível à esquerda, que havia ressuscitado Gramsci e descoberto que a melhor e mais eficaz tática para a tomada completa do poder se faz nos recônditos do sistema, no sequestro paulatino das mentes, por meio da destruição da cultura, do sistema de ensino e da ocupação de espaço nas diversas esferas da sociedade. Ficou óbvio para mim que a estratégia comunista, uma vez desmascarada sua perfídia, batia perfeitamente com as descrições que tive na infância e com os pensamentos dos autores que, em parte por sorte, em parte por impulso próprio, pude tomar contato. O próprio ambiente o qual eu frequentava, contribuía ainda mais para concluir que não bastava a queda de um regime no tempo-espaço, fato comum na história, mas que a verdadeira força que move os homens, para o mal, inclusive, está no imaginário, no campo das ideias e mentalidades. O comunismo não só não estava morto, como aumentava sua força a cada dia.
Na campanha presidencial de 2002 o PT adaptou o discurso às circunstâncias e à conjuntura a fim de conquistar o apoio de parcelas da sociedade que até então eram indiferentes às suas bandeiras, mas a essência não havia mudado, pelo contrário, era a mesma de qualquer partido de esquerda. Para aqueles que haviam se debruçado sobre a história das ideias políticas, os mesmos que em mais de duas décadas de existência do PT - àquela altura - sempre se dispuseram à árdua e importante tarefa de desnudar as verdadeiras intenções de tal grupamento político, era evidente que a chegada de Lula à presidência da República acarretaria consequências gravíssimas para o futuro da nação. Iludida pela maciça propaganda cultural de esquerda, inebriada pela retórica da "justiça social" e do anticapitalismo, grande parte da população brasileira, a despeito dos avisos, deu a vitória para o líder sindical. Leal ao falso clima de "daqui para a frente o país encontrará o caminho da justiça e da prosperidade", espécie de redenção milagrosa que por isso mesmo já faz denotar seu caráter frágil e vazio, boa parte da imprensa e muitos analistas tolos saudaram a eleição da nefasta figura de Lula, como se seu passado parasítico, sua retórica enfadonha e suas ideias horrorosas não existissem. O que valia é que ele era um "homem do povo", "alguém que, por ter supostamente vivido certas agruras, conhecia os males a serem curados e os remédios certos para fazer alcançar o paraíso"... Para os que não foram ouvidos, os que realmente sempre estiveram certos, a questão ia muito além do tempo curto dos atos políticos cotidianos, pois o alicerce do monstro que havia sido imprudentemente libertado repousava na própria natureza da ideia, tocava em temas morais, filosóficos e respondia pela história e pelas tentativas de aplicação de uma teoria que, invariavelmente, conduziu à tragédia. O PT não se degenerou, o PT é uma aberração política e filosófica desde sua essência, desde seu surgimento.
A situação que estamos vivendo no Brasil de hoje não me surpreende, não me causa espanto, pelo contrário, é o resultado inexorável do comunismo, - sistema que não produz outra coisa senão a desigualdade política, facilmente observável em função do enfraquecimento da sociedade civil diante dos poderes corruptos e cada vez mais autoritários do Estado e do aparelhamento das instituições - a miséria econômica, escancarada nos mais diversos indicadores, e a falência da moral e da ética, comprovada pelo domínio da incultura e pela ausência de valores que perpassa vastos segmentos populacionais, independentemente de fatores como classe ou origem étnica.
O Mensalão foi o sinal que deveria ter sido suficiente para que a sociedade brasileira acordasse diante da besta que lhe tomava de assalto, todavia, as armas da propaganda, do assistencialismo e a própria cultura sequestrada pela estratégia gramsciana se mostraram mais fortes do que qualquer evidência, por mais explícita que fosse. Como tão bem mostrou Czeslaw Milosz, mentes cativas não são facilmente recuperadas. Foram concedidos mais beneplácitos ao petismo e o que tivemos depois disso, os tantos outros escândalos e crimes cometidos contra o cidadão e contra as instituições, fazem parte do mesmo objetivo, isto é, a perpetuação no poder e sua concentração cada vez mais intensa nas mãos da organização criminosa. Ao invés de cortar o mal pela raiz sem lhe dar chance de sobrevivência, preferiu-se o método do sangramento lento, escolha de quem jamais conheceu a essência do esquerdismo ou de quem considerava positivo mantê-lo vivo...
Se, como discuti aqui (http://aristaire.blogspot.in/2015/10/um-partido-em-migalhas.html), o caos ao qual fomos conduzidos pelo PT ora se mostra de modo tão escancarado que já não é possível negá-lo sem cair no extremo do ridículo ou sem que rapidamente se revelem interesses escusos por parte de quem nega, fez com que crescesse o antagonismo, com contingentes populacionais que já não mais veem paranoia na acusação de comunismo contra o partido da presidência, a ação demandada na luta a que somos chamados ainda se mostra muitíssimo abaixo do necessário. O impeachment, momentaneamente enfraquecido por um STF aparelhado e caído de joelhos frente ao poder emanado do arcabouço de poder petista, caso se confirme, poderá ter importante significado simbólico, fazendo com que mais gente abra os olhos, tanto para a situação do país, como para a compreensão da verdadeira natureza maléfica do petismo e do esquerdismo, mas não será suficiente para reverter o quadro de apodrecimento institucional, nem para sanar a máquina pública dos vermes que dela se apoderaram de maneira estrutural. Para que o Brasil passe a percorrer a trilha do capitalismo liberal e do governo republicano, será necessário muito mais...

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Giotto di Bondone e o demônio: um retorno ao paradigma indiciário


1. No ano de 1986, o historiador Carlo Ginzburg provocou frisson com seu ensaio "Sinais: Raízes de um paradigma indiciário". Desde então, a temática levantada pelo texto e pela própria obra do autor, na qual ele sempre usa a micro história como suporte, tem sido debatida em suas implicações teóricas, que são riquíssimas e de enorme abrangência. Por outro lado, no entanto, pesquisas historiográficas baseadas em tal arcabouço teórico parecem não ter tido, ao longo desse tempo todo, tanta recorrência, proporcional ao alarido trazido pela reflexão quando a mesma veio à tona, apesar de nomes importantes como Robert Darnton, Natalie Zemon Davies ou Giovanni Levi, que se não são discípulos de Ginzburg, no mínimo, abriram com ele vários caminhos de interlocução. De qualquer maneira, em linhas gerais, o que se observa ainda hoje é o predomínio de explicações tributárias das causas gerais, dos "processos históricos", entendendo-se essa expressão quando associada com quadros esquemáticos estruturais, sem conceder lugar para o que não se enquadra nos moldes preestabelecidos que invariavelmente acompanham tal linha de pensamento. Ainda que a micro história, em última análise, tenha sua busca voltada para a tipicidade, o "X" da questão é: onde podemos encontrá-la?

2. O que tenho em mente é levantar uma bola. Quem estará disposto a chutá-la com um mínimo de direção? Tomemos um dos afrescos de Giotto pintados na Basílica Superior de Assis (Itália), aquele que narra a vigésima cena da vida de São Francisco (imagem acima). É sabido que em 2011, Chiara Frugoni, historiadora e italiana como Ginzburg, descobriu um detalhe, um pormenor revelador que ficara oculto por oitos século na pintura de Giotto. Trata-se da face em perfil de um demônio, cujas feições se caracterizam pelo sarcasmo e pelo sorriso levemente irônico (imagem abaixo). Feita a descoberta, quem se dispõe a observar o afresco com atenção durante alguns segundos, nota que o detalhe foi incluído por Giotto nas nuvens bem ao centro da obra, estando o demônio do lado direito delas.


Por que o artista teria pintado esse pormenor de modo a deixá-lo implícito? Por que o teria feito aproveitando-se das nuvens? Não é segredo o fato de que, como pré-renascentista, Giotto lançasse mão de códigos figurativos em suas pinturas, tanto que essa estratégia foi largamente utilizada por pintores que o sucederam, como Botticelli, Da Vinci e Sanzio. Além de serem portadoras de mensagens, nem sempre aceitas pelo dogma católico, se pensarmos na teoria crítica da Arte proposta por homens como Aby Warburg e Ernst Gombrich, nos depararemos com reflexões a respeito dos vínculos entre forma e função na arte.

3. O efeito estético de uma obra de arte é dado pela técnica do artista, empregada de acordo com a escola à qual ele pertence e também com suas intenções. A busca por originalidade, embora não se relacione a princípio com questões estéticas do ponto de vista morfológico, pode se aproximar do tema à medida em que um artista procura dar seu toque pessoal à obra. Falsários são figuras comuns ao longo da história e seria interessante perguntar se algum deles, antes da descoberta de Frugoni, por acaso percebeu o demônio no afresco de Giotto. Quem possuir, por exemplo, um souvenir não muito recente de Assis, especialmente uma reprodução impressa da Vigésima Cena..., poderá tentar observar se o pormenor consta da cópia. É muitíssimo provável que não.
Para retomar Warburg, Gombrich e Ginzburg, o que define a marca de um mestre da arte não são seus caracteres gerais, seus padrões, mas o detalhe, o pormenor que, estando oculto, uma vez descoberto, traz revelações e indagações. Constatar uma falsificação, na melhor tradição que remonta a Lorenzo Valla e passa por Conan Doyle, se dá no nível dos detalhes. Para o artista, é uma forma de originalidade e de auto proteção contra os falsários, para um médico, um caminho profícuo na tentativa de curar doenças, ao invés de apenas eliminar sintomas, para um investigador, a chave que pode desvendar um crime, para os historiadores, uma maneira das mais sugestivas no objetivo de teorizar os exemplos que a história fornece e propor caminhos de compreensão acerca do passado e do presente. Esse é o paradigma indiciário, no qual nada é dado a priori, sendo necessário criar um trabalho de composição e imaginação criativa por parte do historiador. É como montar um quebra cabeça em que as peças parecem não manter conexão entre si.

4. As explicações para a presença do detalhe demoníaco no afresco de Giotto são várias: é possível que a criatura - ou sua figuração - represente um desafio post mortem para Francisco, ou seja, afastar o demônio seria abrir o caminho dos céus, não apenas a ele mesmo, mas também a seus discípulos e devotos que passaram a orar em seu nome. Essa ideia se coaduna com a disposição geral dos elementos no afresco, mas a representação pode prestar referência a algo além da criatura em si, estabelecendo uma relação com os chamados Estigmas de São Francisco: o homem simples que amou seus irmãos para além dos pecados e defeitos dos seres humanos, mas cuja fé e retidão são capazes de aplacar o Mal. São interpretações iniciais que ainda carecem de rigor científico e que futuramente poderão, através de pesquisas, trazer contribuições importantes.
Resta ainda, entretanto, uma discussão que invade o terreno da Antropologia e da Psicologia: coloquei acima como pergunta o fato da figura demoníaca ter sido representada nas nuvens. De início, parece uma banalidade, já que o demônio poderia estar em qualquer ponto do afresco sem que isso implicasse em mudanças no que foi fruto de reflexão até aqui. É banal só aparentemente..., não nos esqueçamos do pormenor que revela e, mais do que isso, levanta indagações...

5. Quem, quando criança, ou mesmo depois, jamais olhou para as nuvens no céu e tentou lhes atribuir alguma forma reconhecida? Certamente, todos já o fizeram e como se trata de um exercício simples e inocente, totalmente espontâneo, pode-se supor que transcenda tempo e espaço. Além disso, sabendo-se que observar o céu é uma prática remota, comum em sociedades chamadas tradicionais, a tese se reforça e assume um caráter bastante abrangente, vinculado a formas de religiosidade, xamãs e funcionamento da mente.
Ao longo da história, encontramos representações as mais diversas nas quais não apenas as nuvens em si marcam presença, como aparecem associadas a alguma forma (figuras seguintes).

Vincent Van Gogh - Noite Estrelada (1889). Nuvens em espiral. A mente do pintor holandês sempre esteve envolta em mistérios. Hoje, suscita estudos na Física e na Matemática, além da Psicologia.


Capa do álbum Brave New World - Iron Maiden (2000). Eddie toma forma a partir das nuvens na ilustração de Steve Stone e Derek Riggs.

Podemos pensar em duas ideias: a primeira delas é que, por serem efemérides em termos de duração e impermanentes em sua própria forma, além de, evidentemente, remeterem ao elemento celestial, o ser humano, inconscientemente, busca reconhecê-las por meio de um filtro capaz de conferir às nuvens alguma similaridade com o terreno, com o material, com o concreto. Dá-se a esse mecanismo mental, já estudado por cientistas como Carl Sagan (que não é exclusivo da associação de coisas reconhecíveis com nuvens), o nome de pareidolia. Apesar de explicar a motivação, ele não esgota a questão que apenas estou pretendendo abrir.
Desse entendimento, deriva o segundo, qual seja aquele que nos faz supor essa quase necessidade de transformar, na esfera do imaginário, massas amorfas de vapor d'água em coisas reconhecíveis, como um arquétipo.
Nessa aparente reviravolta, reencontramos Giotto em outro sentido além do contextual e do artístico e invadimos a esfera das ciências da mente. De um jeito ou de outro, não abandonamos a busca do pormenor revelador. Os segredos estão nos indícios.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Um partido em migalhas



A História em migalhas é o título de um importante livro do historiador francês François Dosse. Ainda que o autor tenha certa dose de razão, haja vista que algumas pesquisas historiográficas empreendidas no último quartel do século XX pecam por seu caráter excessivamente idiossincrático e pela ausência de relações minimamente importantes com quadros sociais mais amplos, sempre desconfiei bastante das explicações baseadas nas ditas "causas gerais" e das teorias holísticas, sobretudo o marxismo, embutidas na reflexão de Dosse. Como nos atesta a boa micro-história, detalhes aparentemente secundários, de uma hora para outra podem passar a ocupar o centro do palco nas tramas do tempo, além do que, permitem observar as situações que se interpõem perante os sujeitos a partir de perspectivas até então negligenciadas, quase sempre de modo profícuo. O estudo dos pormenores se apresenta, então, como bom instrumento teórico para a análise do passado, mas também de conjunturas recentes. Tanto no que concerne às causas gerais como aos detalhes aparentemente ínfimos, o que se segue tem a ver com esse parágrafo inicial.
Migalhas, no sentido de "coisa pouca", é o que hoje mantém a sustentação de um certo partido no poder... . O Partido dos Trabalhadores surgiu no cenário da política brasileira portando ideias e discursos que, se em 1979 já representavam um grande equívoco, mesmo assim caíram bem (como grande embuste) no contexto de um país em vias de egresso da ditadura militar e já sem que a maior parte da população nutrisse apreço pela alta cultura, resultado da ocupação de espaço esquerdista em todos os níveis educacionais. As diretrizes políticas e a estrutura discursiva, apesar de se assentarem em falsas premissas, encontraram força no apelo à "justiça social", à ética inabalável e à administração "progressista". O que se chama de "canto de sereia" na sociologia política é um desses pormenores reveladores que conferiram elã ao PT e a tantos outros partidos de esquerda, hoje satélites daquele. Esse arcabouço foi mantido praticamente intacto até não muito tempo, embora com mudanças sutis usadas estrategicamente em momentos eleitorais, e o escamoteio deliberado dos detalhes reveladores de sua real natureza deram quatro mandatos presidenciais seguidos aos petistas. No plano cultural em geral, na grande imprensa e no sistema educacional, bem antes mesmo de tomar o poder federal, contando com a desatenção de uma população manipulada e incapaz de se libertar do politicamente correto e do zeitgeist anticapitalista, a esquerda deitou raízes no Brasil.
Todo esse sistema de poder erguido cuidadosamente em âmbito cultural, político  e social obedeceu a uma lógica totalizante e coerente do ponto de vista de sua estrutura interna. Funcionou bem, como todos sabem, mas agora se encontra esgotado. As promessas idílicas, típicas de qualquer discurso esquerdista, nada mais do que jogos de palavras cujo objetivo final é a própria tomada de poder em detrimento das liberdades individuais, se revelaram tremenda falácia, como não poderia deixar de ser. Somem-se à implosão do paradigma central os desastres adjacentes de um governo centralizador e comunista: distribuição de favores no interior da máquina pública e seu aparelhamento, corrupção sistêmica elevada a modus operandi, gastos crescentes e incessantes, baixa produtividade, economia em declínio franco e constante, inflação, recessão, falência completa da educação e dos serviços de saúde, e o quadro se completa. Mas por que, mesmo dando impressão clara de que tudo é apenas questão de tempo, o PT ainda se permanece no poder? Quem pode pensar em democracia diante de tal panorama? Voltemos às migalhas...
A cultura, que traz consigo um evidente componente moral, é algo cuja mudança se insere na longa duração e a alteração completa de nossa organização política só viria depois daquela. Pensar que o país dependa de temporalidade lenta para que mudanças aconteçam é desanimador, mas é possível que estejamos, ao menos, no fim de um ciclo conjuntural de média duração, porém, isso dependerá, em boa medida, das escolhas que fizermos... A esquerda que hoje está no poder se sustenta de modo tênue, presa em excrescências politicamente corretas, bandeiras de minorias sedentas dos favores estatais. Um partido cujas diretrizes se dissolveram por completo, até por serem falsas, sobrevive distribuindo migalhas para quem levanta ideias fragmentárias, também elas, no fim das contas, migalhas... Universitários e acadêmicos ainda crentes no ranço marxista, "movimentos sociais" e sindicatos bancados pelo dinheiro do contribuinte, gayzistas, feministas e afins. Esses grupelhos, evidentemente, não carregam projeto algum de sociedade, até porque sua ordenação é fragmentária, segregacionista e sua pretensão futura é o fim da própria sociedade, como procurei discutir, de certa forma, no artigo anterior. A análise da história nos revela que esses movimentos, invariavelmente, tiveram o totalitarismo como resultado, fazendo com que aquilo mesmo que sempre defenderam se tornasse algo impraticável em regimes que não podem existir sem o controle máximo dos indivíduos e a intensa centralização política nas mãos do Estado. O terror, a vigilância, as arbitrariedades, as perseguições e execuções são características inerentes de todos os sistemas criadores de nichos que subdividem o corpo social, colocando uns contra os outros de modo extremamente severo e aflorando ódios que culminam em guerra civil e na posterior consolidação, por tempo indeterminado, de um líder que se autoproclama o justiceiro de todos os males sobre a Terra. Isso lhe soa familiar?
Observar esse microcosmo que faz a esquerda se sustentar tem viés duplo: positivamente, nos leva a crer que, sem uma política coesa em termos de sociedade, qualquer organização partidária está fadada ao fracasso, algo que já tem sido notado claramente, já que o apoio restrito de grupos atomizados foi só o que restou ao PT, com a imensa maioria do corpo social estando na oposição; por outro lado, o problema pode ser muito maior em função da fraqueza da sociedade diante de um Estado semi-totalitário e da situação das instituições, corrompidas, aparelhadas e envoltas nos joguetes de poder, reflexo do próprio sistema instaurado pelo petismo. Essa ainda é sua característica mais forte.
Ao cidadão de bem, restam alguns meios de ação e, se levarmos em conta a máxima de Edmund Burke, é com extrema urgência que os bons necessitam agir para que o mal não triunfe. Fica mais difícil conforme o tempo passa, pois os inimigos da sociedade tornam seu poder mais independente e autocentrado à medida em que vão exterminando as forças livres. É hora de pressão intensa contra o (des)governo petista! Vamos ficar só assistindo passivamente?